“Vocês se lembram de Charles Chaplin em ‘Luzes da Ribalta’ fazendo o número das pulgas amestradas?”. Era assim que o cronista esportivo Nelson Rodrigues via Garrincha, um dos maiores gênios da história do futebol mundial, que faleceu há 25 anos, no dia 20 de janeiro de 1983.
Sua irreverência e genialidade encantam a todos até hoje. Até os que confessam não gostar de futebol se dobram aos dribles do “anjo de pernas tortas”, como foi chamado pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. Manuel Francisco dos Santos nasceu em Pau Grande, no Rio de Janeiro. Antes de encantar o mundo com seus dribles, Mané Garrincha (ou simplesmente Mané) enfrentou todas as agruras da miséria. Consta que as pernas tortas foi o resultado de uma poliomielite adquirida na infância. Por causa da distrofia física, os médicos acharam que ele nunca seria capaz de andar direito, tampouco jogar bola. Erraram feio. Também erraram os cartolas do Vasco e do São Cristóvão, que o dispensaram em função das pernas tortas e de um desvio na coluna. Mané, então, procurou o Botafogo.
O gramado virava o picadeiro de Mané, a bola lhe era submissa e a partida virava uma festa. “É ai que estava o milagre. O povo ria antes da graça, da pirueta. Ria adivinhando que Garrincha ia fazer sua grande ária, como na ópera. Como se sabe só jogador medíocre faz futebol de primeira. O craque, o virtuoso e o estilista, prendem a bola. Sim, ele cultiva a bola como uma orquídea de luxo”, sentenciava Nelson Rodrigues. Os dribles de Garrincha não tomavam conhecimento do adversário. Fosse quem fosse o marcador era sempre algum “João” parafusado na lateral. Quando a bola estava em seus pés, todos eram iguais. Muitas vezes parecia que o craque lutava sozinho contra os onze adversários. Eles os perseguiam, lutavam em vão como touros. Mas Garrincha era um matador. Depois de driblar dois, três, quatro jogadores, ele colocava suas mãos na cintura e esperava. O silêncio das multidões era o prelúdio das gargalhadas.
O craque conheceu seu auge nas copas de 1958 e 1962. Na primeira, seu brilho foi um tanto ofuscado por um jovem e talentoso jogador chamado Pelé. Mas foi considerado o melhor de sua posição, a ponta-direita. Na segunda, Garrincha foi o responsável pela conquista do bicampeonato da seleção. Nessa Copa Pelé, já consagrado, não pôde jogar devido a uma contusão. No entanto, na maior parte de sua carreira, ele defendeu o Botafogo (1953 a 1965). Passou também pelo Corinthians (1966), Flamengo (1969) e também no Olaria, em 1972, quando já estava em fase decadente. Pela seleção atuou até 1966, ano em que a Inglaterra conquistou o mundial e o Brasil foi eliminado por Portugal. Se Garrincha foi chamado de “a alegria do povo”, sua vida foi marcada por muitas tragédias. No final dos anos 60, Mané entrou numa espiral de decadência. Seu casamento com a cantora Elza Soares, muito condenado na época, estava nas últimas. Com a idade e a vida boêmia, Mané perdeu a agilidade para o futebol. Seus problemas se agravaram com o alcoolismo, que acabou o levando à morte. Em 1982, depois de vários anos sem ser visto publicamente, um Garrincha catatônico surgiu em um carro alegórico da Mangueira, que lhe prestava homenagem naquele carnaval. Mané não conseguia nem ficar em pé para saudar a multidão que tanto lhe louvou. Anos depois, morreu pobre e solitário.
Nas lembranças e homenagens que serão rendidas ao craque, muitos dirão que Mané não teria espaço no futebol moderno. Infelizmente eles não deixam de ter certa razão. A alegria e a irreverência de Garrincha nada têm a ver como o futebol técnico, mecânico, defensivo, posteriormente apelidado como “futebol de resultado”, praticado por jogadores pagos a peso de ouro. E pior, uma mediocridade louvada por inúmeros jornalistas, jogadores e técnicos, chamados hoje em dia de “professores”. Mesmo assim, a sombra da irreverência de Mané tenta sobreviver, como, por exemplo, no drible da foca do cruzeirense Kerlon, que controla a bola na cabeça e vai à direção do gol. Em um jogo contra o Atlético Mineiro, ao tentar a jogada Kerlon foi agredido com violência e burrice, pelo seu marcador. O caso provocou polêmica e os arautos da mediocridade defenderam a agressão. “Irreverência não pode, o que vale é dar porrada”, propagou aos quatro ventos o “professor” Joel Santana.O que esperar de um futebol cujos campeonatos são marcados pela corrupção, cartolagem e a crescente mercantilização das grandes empresas que patrocinam clubes e jogadores? De um campeonato de péssimo nível técnico, onde o melhor jogador brasileiro é um goleiro? Não que Rogerio Cenni não mereça, mas o Brasil sempre foi um celeiro de artilheiros. Infelizmente, no futebol dos pernas de pau, dos medíocres e ordinários, há cada vez menos espaço para espetáculos de “pernas tortas”.
Jeferson Choma do Opinião Socialista
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