As relações entre Estado e futebol sempre foram nebulosas, muito especialmente os Estados autoritários, o que, porém, não equivale a dizer que dirigentes eleitos democraticamente também não tenham procurado se apropriar do prestígio que o esporte oferece, aproveitando-se da fama que equipes e jogadores conquistam em campo. Também não foram poucos os governos — e não só na América do Sul — que trataram de consolidar a idéia de orgulho nacional através das vitórias de seus selecionados.
É o que mostra Gilberto Agostino, historiador associado ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu trabalho Vencer ou Morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional, sem deixar de registrar que o esporte também já serviu a nobres ideais em busca da liberdade (quem tem mais de 30 anos deve se lembrar da seleção polonesa na Copa do Mundo de 1982, na Espanha, sempre acompanhada nos estádios pela bandeira do movimento sindical Solidariedade).
Em sua pesquisa, Agostino recorda que foi no condado de York, em Sheffield, centro industrial de aço, na Inglaterra, que nasceu em 1855 o primeiro clube voltado especificamente para o futebol. Aliás, o futebol desde suas origens esteve ligado aos trabalhadores, em função da gradativa ampliação dos horários de lazer, especialmente com a folga após o meio-dia de sábado. O autor lembra que a final da Copa da Footbal Association, a primeira liga da modalidade, em 1877, no Crystal Palace, em Norwood, subúrbio de Londres, reuniu mais de 27 mil pessoas — a maior parte operários.
No Brasil, o futebol logo conquistou adeptos na incipiente classe trabalhadora do Rio de Janeiro, o que levou alguns intelectuais a condená-lo. O escritor mulato Lima Barreto, por exemplo, foi um dos organizadores da Liga contra o Futebol. Mais tarde, o romancista Graciliano Ramos também iria questionar o esporte bretão, dizendo que o futebol não iria conquistar o sertão. Já o escritor Coelho Neto, figurão bem situado na sociedade carioca, não só foi entusiasta do futebol como dois de seus filhos, Mano e Preguinho, tornaram-se grandes jogadores. Ele morava em frente ao campo do Fluminense e virou torcedor desvairado de um clube que não aceitava negros em seu time. Foi o Vasco da Gama, clube criado pelos comerciantes portugueses do Rio de Janeiro, o primeiro a escalar negros em sua equipe.
Como mostra Agostino, a princípio, não só na Europa como na América do Sul, abriu-se através do esporte um importante elemento questionador do mito da superioridade do homem branco, principal base ideológica do imperialismo, que “justificava”, por exemplo, a presença de europeus na África. Em 1919, por exemplo, foi realizado o primeiro Campeonato Sul-Americano, possibilitando aos brasileiros a conquista de um título que representou um dos maiores orgulhos nacionais da época. Mas, por imposição do presidente Epitácio Pessoa, para essa seleção não foram chamados negros porque poderiam ser chamados de macaquitos pelos argentinos, tal como ainda fazem hoje com jogadores negros brasileiros na Itália e na Espanha.
Como observa o autor, logo os fascistas iriam se aproveitar da força que o espetáculo esportivo podia vir a representar numa sociedade de massas, embora Mussolini, a princípio, tenha dado maior importância aos chamados esportes de guerra: ginástica, boxe, natação, esgrima e tiro. Só mais tarde o futebol seria considerado um esporte condizente com os mais nobres valores do regime. E o Duce logo iria se deixar fotografar ao lado de futebolistas para tentar passar a idéia de força física.
O auge dessa exploração dar-se-ia na Copa do Mundo de 1938, quando a Squadra Azurra derrotou a Hungria na final por 4 a 2. Pouco antes do jogo, os jogadores receberam um telegrama do próprio Mussolini: Vencer ou Morrer. Com a vitória, os jogadores seriam recebidos em Roma como novos gladiadores. “Para o regime, o êxito esportivo e a potencialidade propagandística criavam mais uma vez uma ocasião monumental, capaz de ritualizar a fidelidade nacional e exaltar valores do regime”, observa Agostino.
Também a Alemanha nazista fez dos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, a apoteose esportiva e estética do Terceiro Reich, aproveitando-se de uma competição pacífica entre nações para promover uma explosão de ódio e terror e de perseguição a judeus, ciganos, comunistas, anarquistas e tantos outros. No Brasil, o fascismo caboclo de Getúlio Vargas não deixou de promover pantomimas no estádio do Vasco da Gama. E, em 1950, depois da redemocratização de 1945, há quem diga que a frustração da derrota brasileira para o Uruguai na final da Copa do Mundo foi motivada principalmente pelo acesso indiscriminado de políticos à concentração da seleção nas horas que antecederam a partida final. Afinal, todos queriam aproveitar a oportunidade para tirar uma foto ao lado daqueles que já eram considerados antecipadamente campeões do mundo.
A maior exploração política do futebol no Brasil, porém, viria vinte anos mais tarde, quando a seleção sagrou-se tricampeã do mundo no México, à época em que a ditadura militar promovia a tortura e a matança indiscriminada de opositores políticos. A cada vitória, uma aclamação popular parecia legitimar o regime, enquanto o próprio ditador de plantão, o general Garrastazu Médici, aparecia no noticiário da TV fazendo canhestramente embaixadas com a bola nos pés.
Em 1978, na Argentina, igualmente sob botas, a Copa do Mundo foi organizada para levar o time da casa ao título e estimular o patriotismo e legitimar o regime espúrio. Muitos jornalistas compararam a cerimônia de abertura dessa Copa à estética política do nazismo. E não estiveram longe da verdade.
Em seu estudo, Agostino lembra ainda que o momento da decolagem da interação do futebol com os meios de comunicação foi a Copa da Suíça em 1954, transmitida pela primeira vez pela TV. Nascia a Eurovisão e começava a declinar o domínio do rádio nas transmissões esportivas. Na Copa da Suécia, em 1958, as transmissões foram para quase todos os países da Europa, embora nem todas as famílias dispussem de televisores. Mas a grande mudança deu-se em 1970, na Copa do México, quando algumas partidas foram disputadas sob o sol do meio-dia para atender a exigências da TV e a propaganda invadiu quase todos os espaços ao redor do gramado. Mais tarde, alcançaria as camisas dos jogadores e muito mais.
Para Agostino, talvez seja impossível resistir a estandardização do jogo, que pode levar a modalidade a uma espécie de Rollerball, como mostrado num antigo filme de Hollywood. Em tempos de globalização, em que a nova ordem financeira internacional alimenta-se da pobreza humana e da destruição do ambiente natural, mais do que nunca, o “colonialismo de mercado” domina o futebol. É o que explica por que os clubes europeus compram por bagatelas os direitos de ter um jogador sul-americano para transformá-lo em máquina de fazer dinheiro. Basta lembrar que o brasileiro Ronaldinho, do Barcelona, foi adquirido ao Grêmio de Porto Alegre por US$ 4 milhões e, hoje, vale pelo menos US$ 150 milhões. Quer dizer, o futebol continua a servir a poderes opressivos, ainda que os opressores usem palavras suaves.
É o que mostra Gilberto Agostino, historiador associado ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em seu trabalho Vencer ou Morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional, sem deixar de registrar que o esporte também já serviu a nobres ideais em busca da liberdade (quem tem mais de 30 anos deve se lembrar da seleção polonesa na Copa do Mundo de 1982, na Espanha, sempre acompanhada nos estádios pela bandeira do movimento sindical Solidariedade).
Em sua pesquisa, Agostino recorda que foi no condado de York, em Sheffield, centro industrial de aço, na Inglaterra, que nasceu em 1855 o primeiro clube voltado especificamente para o futebol. Aliás, o futebol desde suas origens esteve ligado aos trabalhadores, em função da gradativa ampliação dos horários de lazer, especialmente com a folga após o meio-dia de sábado. O autor lembra que a final da Copa da Footbal Association, a primeira liga da modalidade, em 1877, no Crystal Palace, em Norwood, subúrbio de Londres, reuniu mais de 27 mil pessoas — a maior parte operários.
No Brasil, o futebol logo conquistou adeptos na incipiente classe trabalhadora do Rio de Janeiro, o que levou alguns intelectuais a condená-lo. O escritor mulato Lima Barreto, por exemplo, foi um dos organizadores da Liga contra o Futebol. Mais tarde, o romancista Graciliano Ramos também iria questionar o esporte bretão, dizendo que o futebol não iria conquistar o sertão. Já o escritor Coelho Neto, figurão bem situado na sociedade carioca, não só foi entusiasta do futebol como dois de seus filhos, Mano e Preguinho, tornaram-se grandes jogadores. Ele morava em frente ao campo do Fluminense e virou torcedor desvairado de um clube que não aceitava negros em seu time. Foi o Vasco da Gama, clube criado pelos comerciantes portugueses do Rio de Janeiro, o primeiro a escalar negros em sua equipe.
Como mostra Agostino, a princípio, não só na Europa como na América do Sul, abriu-se através do esporte um importante elemento questionador do mito da superioridade do homem branco, principal base ideológica do imperialismo, que “justificava”, por exemplo, a presença de europeus na África. Em 1919, por exemplo, foi realizado o primeiro Campeonato Sul-Americano, possibilitando aos brasileiros a conquista de um título que representou um dos maiores orgulhos nacionais da época. Mas, por imposição do presidente Epitácio Pessoa, para essa seleção não foram chamados negros porque poderiam ser chamados de macaquitos pelos argentinos, tal como ainda fazem hoje com jogadores negros brasileiros na Itália e na Espanha.
Como observa o autor, logo os fascistas iriam se aproveitar da força que o espetáculo esportivo podia vir a representar numa sociedade de massas, embora Mussolini, a princípio, tenha dado maior importância aos chamados esportes de guerra: ginástica, boxe, natação, esgrima e tiro. Só mais tarde o futebol seria considerado um esporte condizente com os mais nobres valores do regime. E o Duce logo iria se deixar fotografar ao lado de futebolistas para tentar passar a idéia de força física.
O auge dessa exploração dar-se-ia na Copa do Mundo de 1938, quando a Squadra Azurra derrotou a Hungria na final por 4 a 2. Pouco antes do jogo, os jogadores receberam um telegrama do próprio Mussolini: Vencer ou Morrer. Com a vitória, os jogadores seriam recebidos em Roma como novos gladiadores. “Para o regime, o êxito esportivo e a potencialidade propagandística criavam mais uma vez uma ocasião monumental, capaz de ritualizar a fidelidade nacional e exaltar valores do regime”, observa Agostino.
Também a Alemanha nazista fez dos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim, a apoteose esportiva e estética do Terceiro Reich, aproveitando-se de uma competição pacífica entre nações para promover uma explosão de ódio e terror e de perseguição a judeus, ciganos, comunistas, anarquistas e tantos outros. No Brasil, o fascismo caboclo de Getúlio Vargas não deixou de promover pantomimas no estádio do Vasco da Gama. E, em 1950, depois da redemocratização de 1945, há quem diga que a frustração da derrota brasileira para o Uruguai na final da Copa do Mundo foi motivada principalmente pelo acesso indiscriminado de políticos à concentração da seleção nas horas que antecederam a partida final. Afinal, todos queriam aproveitar a oportunidade para tirar uma foto ao lado daqueles que já eram considerados antecipadamente campeões do mundo.
A maior exploração política do futebol no Brasil, porém, viria vinte anos mais tarde, quando a seleção sagrou-se tricampeã do mundo no México, à época em que a ditadura militar promovia a tortura e a matança indiscriminada de opositores políticos. A cada vitória, uma aclamação popular parecia legitimar o regime, enquanto o próprio ditador de plantão, o general Garrastazu Médici, aparecia no noticiário da TV fazendo canhestramente embaixadas com a bola nos pés.
Em 1978, na Argentina, igualmente sob botas, a Copa do Mundo foi organizada para levar o time da casa ao título e estimular o patriotismo e legitimar o regime espúrio. Muitos jornalistas compararam a cerimônia de abertura dessa Copa à estética política do nazismo. E não estiveram longe da verdade.
Em seu estudo, Agostino lembra ainda que o momento da decolagem da interação do futebol com os meios de comunicação foi a Copa da Suíça em 1954, transmitida pela primeira vez pela TV. Nascia a Eurovisão e começava a declinar o domínio do rádio nas transmissões esportivas. Na Copa da Suécia, em 1958, as transmissões foram para quase todos os países da Europa, embora nem todas as famílias dispussem de televisores. Mas a grande mudança deu-se em 1970, na Copa do México, quando algumas partidas foram disputadas sob o sol do meio-dia para atender a exigências da TV e a propaganda invadiu quase todos os espaços ao redor do gramado. Mais tarde, alcançaria as camisas dos jogadores e muito mais.
Para Agostino, talvez seja impossível resistir a estandardização do jogo, que pode levar a modalidade a uma espécie de Rollerball, como mostrado num antigo filme de Hollywood. Em tempos de globalização, em que a nova ordem financeira internacional alimenta-se da pobreza humana e da destruição do ambiente natural, mais do que nunca, o “colonialismo de mercado” domina o futebol. É o que explica por que os clubes europeus compram por bagatelas os direitos de ter um jogador sul-americano para transformá-lo em máquina de fazer dinheiro. Basta lembrar que o brasileiro Ronaldinho, do Barcelona, foi adquirido ao Grêmio de Porto Alegre por US$ 4 milhões e, hoje, vale pelo menos US$ 150 milhões. Quer dizer, o futebol continua a servir a poderes opressivos, ainda que os opressores usem palavras suaves.
Escrito por: Adelto Gonçalves .
Um comentário:
Salve muito bom o blog!
Não sei mas no Brasil a relação "povo futebol" é na minha modesta opinião, um fruto que a mídia aguça e atiça, e só!
Provos Brasil
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