12 de junho de 2010

Na Argélia, futebol pela Libertação Nacional

Com mais de um milhão de mortos na guerra da independência, a Argélia cultua seus mártires. Do bairro chique de El Biar à popular Casbah, com suas edificações do período otomano à beira do Mediterrâneo, as homenagens àqueles que derramaram sangue contra as tropas francesas preservam a memória da revolução de 1 de novembro. Nos campos de batalha, o futebol foi uma arma de divulgação poderosa da causa argelina. Em Bel Aknoun, num imóvel cedido pelo ministério da defesa, a fundação da equipe da Frente de Libertação Nacional (FLN) mantém viva a alma militante e combatente de um time formado na clandestinidade que, entre 1958 e 1962, esteve a serviço da luta pela soberania nacional.

- Fomos os embaixadores do movimento de libertação - orgulha-se , que, aos 74 anos, entre um cigarro e outro, faz um relato comovente do passado: - Tínhamos a filosofia dos brasileiros, um futebol de toques cadenciados. Aprendemos nas ruas, como vocês.

A ideia de usar o futebol para popularizar o movimento pró-independência surgiu em 1957, três anos depois que grupos nacionalistas armados se organizaram em torno do FLN, núcleo do corpo revolucionário que tomou a frente do processo pelo fim do período colonial. O plano de Mohamed Boumezrag, membro da organização e técnico recém-chegado dos Jogos da Juventude, em Moscou, era ambicioso: montar um time com os principais jogadores de origem argelina baseados na França que amplificasse o desejo de liberdade do povo. Maouche, meia do Stade de Reims, o esquadrão francês no qual jogavam Piantoni, Kopa, Just Fontaine e Jonquet, foi seu braço direito. Representante do comando central do FLN em Paris, contactou os primeiros 10 jogadores que, após a rodada do campeonato francês de 12 de abril de 1958, um domingo, partiriam rumo a Túnis, sede do Governo Provisório da República da Argélia.

Fuga pela liberdade

Aderir ao chamado da revolução, para alguns, significava abrir mão de carreiras em ascensão. Mustapha Zitouni, zagueiro do Monaco, e Rachid Mekhloufi, meia-atacante do Saint-Étienne, estavam na lista de convocados da França para a Copa da Suécia. Abdelaziz Bentifour, meia do Monaco, já era um veterano da Copa de 1954, na Suíça. Famoso na Cote D'Azur, aproveitava o trânsito livre que tinha na região para traficar armas para o comando da revolução. Com parentes sofrendo os horrores da guerra, nenhum deles disse não à convocação. Na noite programada, dois grupos deixaram a França de trem, um pela fronteira com a Suíça, outro pela Itália. Desses dois países, iriam de avião a Túnis.

- A ordem era que ninguém viajasse no mesmo vagão. Tudo fora minuciosamente preparado - lembra Maouche.

Mekhloufi teve problemas. Naquela tarde, na partida contra o Béziers, ele sofreu uma pancada na cabeça e foi do estádio para o hospital, perdendo o embarque. Na ânsia de resgatá-lo, Maouche voltou à França dois dias depois. Em Paris, as manchetes já noticiavam a fuga dos argelinos. Militar lotado no batalhão de Joinville, acabou sendo preso como desertor ao tentar voltar à Suíça. Abderrahmane Soukhane, atacante do Le Havre, chegou a ser condenado à revelia por 10 anos pelo mesmo motivo. Mesmo com Maouche detido, outros jogadores, previamente contactados, continuaram desembarcando em Tunis nos meses seguintes. Em dois de novembro, eles já eram quase 30.

Laços com bloco socialista

Pressionada pelos clubes franceses, a Fifa suspendeu oito integrantes da primeira leva de argelinos que fugiram por quebra de contrato. O documento, assinado pelo suíço Kurt Gassmann, secretário geral da entidade entre 1951 e 1960 e datado de 7 de maio, proibia que participassem de seleções nacionais ou clubes filiados a ela. Alheio às retaliações, o FLN prosseguiu sua missão. O time excursionou pelo leste europeu, onde jogou em quase todos os países que formavam o bloco socialista liderado pela URSS; península arábica, países magrebinos e Ásia. No Vietnã, os jogadores foram recebidos pessoalmente pelo líder Ho Chi Minh; na China de Mao Tse Tung, deram clínicas para audiências massivas. Por onde passava, o FLN recebia carinho e admiração.

- Todos esses países contribuíram com armas e dinheiro para a revolução - revela Mohamed Soukhane, lateral do Le Havre, irmão de Abderrhamane. - O Egito, não. Nunca quis nos enfrentar - provoca, remetendo à rivalidade que, nas eliminatórias da Copa de 2010, deixou um rastro de violência no jogo decisivo no Sudão.

Quando foi libertado após 13 meses de detenção, em outubro de 1960, Mohamed Maouche levou os últimos seis jogadores que ainda estavam na França ao encontro dos companheiros na Tunísia. Em 29 de março do ano seguinte, em Belgrado, o time conseguiu uma de suas vitórias mais expressivas: goleou por 6 a 1 a seleção iugoslava medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Roma. Na preliminar, o Bangu havia vencido o Estrela Vermelha. Convidados pela cúpula do FLN para um amistoso, os brasileiros negaram.

- Até nos verem jogar, eles pensavam que éramos da orquestra do hotel - diz Soukhane, às gargalhadas.

Em quatro anos, o FLN fez 91 jogos (65v/13e/13d), nos quais marcou

385 gols e sofreu 127. Após a independência, oficializada em 5 de julho de 1962, tornou-se o embrião do que viria ser a primeira seleção da Argélia. Três anos depois, alguns poucos integrantes do extinto FLN estavam na equipe que perdeu por 3 a 0 no Estádio 19 de julho, em Oran, para um Brasil que tinha Gérson, Garrincha e Pelé.

- Perdemos, mas foi um prazer - brinca Maouche.

Escrito por: Fábio Juppa.

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