30 de novembro de 2008

Autônomos FC: "futebol com alegria, mais espontâneo, menos mercadológico"


Entrevista concedida pelo Autônomos FC para a ANA, Agência de Notícias Anarquistas.




Criado por punks e anarquistas, desde 1º de maio de 2006, existe na Grande São Paulo um time de futebol autogestionado, com espírito anárquico. O Autônomos Futebol Clube, ou “Auto”, como é carinhosamente chamado por seus “fãs”. “Um time com ideal autogestionário, anti-racista, anti-fascista, contra o futebol mercadoria”, explica Kadj Oman, um dos fundadores do clube. Na entrevista a seguir, ele fala, com a espontaneidade e malandragem libertária de um bom boleiro varzeano, do Autônomos FC e do esporte mais popular do país, cada vez mais industrializado e burocratizado pelos interesses materiais. Mas que, também, sob sol e chuva, terra batida, bola improvisada, descalços, resiste, alegra e encanta nas mais diversas “peladas” das periferias e rincões miseráveis do Brasil. Confira o bate-bola:


Agência de Notícias Anarquistas > Fale um pouco sobre o Autônomos Futebol Clube, sua organização e objetivos, em que contexto ele surge…

Kadj Oman < Bom, no fim de 2005, eu comecei a organizar um campeonato de futebol de salão que se chamava Copa Autonomia. Nele, não havia juiz e as regras eram poucas. Fizemos 10 edições dessa copa sem nenhum problema. Mulheres jogavam, crianças, a gente se divertia (inclusive, dá pra ver o vídeo da 1ª edição do torneio procurando pelo nome no YouTube). Aí, no Carnaval Revolução de 2006, em Belo Horizonte (MG), acabei participando de uma palestra/bate-papo sobre futebol e revolução, e conheci o Mau, o Jão e a Mix, do Ativismo ABC. Compartilhando um pouco das nossas angústias sobre o punk e o futebol, tivemos a idéia de fazer algo nesse sentido quando voltássemos. Aí eu aproveitei que na Copa Autonomia tinha um pessoal interessado na idéia e fundamos o time, pra jogar futebol society, no início. Foi uma época de muitas alegrias e muitas derrotas, tirando as amizades que surgiram. Jogaram suíços (5 ao mesmo tempo, de uma banda de ska), argentinos, australianos, canadenses, colombianos. E muitos brasileiros, punks ou não, afeitos ao ideal de autogestão. Mas o societyera mercadológico demais pra gente, e então fomos pra várzea, onde mais e mais gente foi se interessando pelo time e ele cresceu. Hoje temos dois quadros e um time “júnior”, composto por alunos de um dos zagueiros do time. Sobre a organização, bem, a gente divide tudo, desde lavar os uniformes até ficar de gandula nos jogos, passando pela vaquinha pra pagar o campo em que jogamos, que é alugado. E os objetivos sempre foram o de resgatar o futebol com alegria, mais espontâneo, menos mercadológico, sem se fechar a qualquer um que concordasse com a idéia de autogestão. Faz pouco mais de um mês, traçamos um estatuto, já que o time está cada vez maior e a gente não quer perder o objetivo principal dele, que é se divertir. Lógico que jogamos pra ganhar, até porque fazer as coisas você mesmo pra gente significa fazer o melhor possível, mostrar o quão bom se pode ser assim. Mas não colocamos a vitória acima de tudo - aliás, só nos últimos 4 meses que o time passou a ganhar mais do que perder mesmo.


ANA > E que história é essa de futebol autogestionado?

Oman < Pra ser justo, toda a várzea é meio que autogestionada. Surgem campos onde quer que haja um pedacinho de terreno, por mais que a metrópole engula espaços e vomite de volta o futebol society e o futsal, além do profissional, é claro. Mas no nosso caso, a autogestão passa por uma questão estrutural, de não ter presidente, diretor, tesoureiro, nada. Temos sim capitão, técnico, goleiros, laterais-direitos, porque isso não tem a ver com hierarquia necessariamente, e sim com aptidões ou gostos pessoais por jogar aqui ou ali, ou fazer essa ou aquela função. E divulgamos essa idéia de autogestão por onde jogamos, distribuindo panfletos ou no boca-a-boca mesmo. Alguns jogadores que estão com a gente, inclusive, eram de times que enfrentamos e que gostaram do nosso jeito de lidar com as coisas. Então a nossa autogestão é tentar ser o mais livre possível dentro do que se quer ser, mas respeitando os princípios básicos e as responsabilidades inerentes a todo projeto coletivo, como chegar na hora, colaborar com a grana sempre que necessário etc. Claro que no meio disso tudo às vezes surgem conflitos, mas o que seria a vida sem conflitos?


ANA > E qual a relação do Autônomos FC com o anarquismo? A cor do uniforme é mera coincidência? (risos)

Oman < (risos) É não é não. Acontece que o time foi fundado por punks e anarquistas, então na hora de escolher o escudo e as cores do uniforme isso contou. Mas conforme foi crescendo, o Auto (apelido carinhoso do time) foi se abrindo. Nunca foi um time explicitamente anarquista, mas sempre foi um time com ideal autogestionário, anti-racista, anti-fascista, contra o futebol mercadoria. Na verdade, os fundadores e boa parte do time, hoje, é de românticos, que ainda enxerga o futebol como uma crônica continuamente narrada a muitas vozes sobre a vida. Até banda de “rock’n'gol” o time gerou, a Fora de Jogo, que toca trajada com os uniformes do time e fala de futebol (sob uma ótica política) em todas as suas músicas. Além de que, convenhamos, preto e vermelho é uma combinação de cores das mais bonitas que existe. Os anarquistas, além de tudo, sempre tiveram bom senso estético. (risos)


ANA > Como explicar um anarquista ser fanático por futebol, por um time profissional, que cada vez mais são verdadeiros instrumentos capitalistas de manipulação, consumo e controle social? Ou assim como o amor não tem explicação? (risos)

Oman < Olha, explicação mesmo acho que não tem. A gente cresce gostando de futebol, aprende nele e com ele a se expressar, a se entender no meio de um coletivo (a torcida), acaba virando um dos nossos primeiros lugares de socialização. E como é o único que é contínuo pela vida toda, difícil se desligar dele. Até porque existiram muitos times anarquistas na história, o começo do futebol é operário, e ele é mais do que tudo uma festa popular. No início do século anarquistas aqui em São Paulo nomeavam suas equipes de “Flor” ou “Estrela”. Então, sempre que você encontrar um boteco ou padaria com esse nome, são grandes as chances de ele ter um passado anarquista. (risos)

E se o profissional é cada vez mais instrumento de controle, ele permite também nas suas brechas diversos tipos de encontros essencialmente anti-capitalistas, pró-ócio, pró-festa. A Gaviões da Fiel, torcida do Corinthians, por exemplo, se aproximou do MST nos últimos anos, dos Sem-Teto, promove festivais de cinema político, entre outras coisas. Temos que tomar cuidado pra não tomar a festa do povo por ópio, esse velho clichê, porque não é simples assim. O futebol foi apropriado pelo capital, assim como todo o resto, mas o próprio capital, contraditório que é, recria possibilidades dentro do profissional mesmo de ir contra ele (um bom exemplo, embora já meio distante temporalmente, é a Democracia Corinthiana). Cabe encontrar essas brechas, aproveitá-las, aprofundá-las. Durante toda a sua história o futebol opôs controle à festa, foi usado para dominar de um lado e para contra-atacar o domínio de outro. São tantas as histórias possíveis de serem contadas dentro do futebol… Um livro legal sobre isso é o “A Dança dos Deuses - Futebol, Sociedade, Cultura”, do historiador Hilário Franco Júnior. O que podemos e devemos fazer é continuar a contá-las, do nosso jeito, sem deixar que as vendam como mero produto descartável.


ANA > Será mesmo que o futebol profissional recria possibilidades de ir contra ele mesmo? Não acredito. O futebol profissional brasileiro está tomado pela maracatuia, pelo mercado, pelo negócio, vide Rede Globo, CBF´s, Trafic´s, Adidas e por aí vai. E por outro lado, os jogadores profissionais, na sua maioria, são despolitizados, sem atitude, vão à mercê dos dirigentes, cartolas. E no grosso as torcidas organizadas não são muito diferentes disso tudo não, também vão a reboque de políticos, dirigentes, cartolas… Na Itália, e em outras partes da Europa, que foi criado um movimento interessante por vários grupos “Ultras”, chamado “Contra o Futebol Moderno”, que luta contra as condições precárias dos estádios, ingressos caros, partidas sendo jogados em horários não-tradicionais, jogadores sendo vendidos como mercadoria, a comercialização excessiva no futebol etc. As torcidas uniformizadas do Brasil poderiam seguir esse exemplo, não?

Oman < Não vou te dizer que o profissional dá possibilidades o tempo todo de se ir contra ele, mas as recria vez ou outra sim. Se está envolto em tudo isso que foi mencionado, me diga, em que é diferente de qualquer outra esfera da sociedade? Tudo foi apropriado pelo capital, as relações sociais baseadas na venda são quase totalitárias, então as brechas são mesmo pequenas, ainda mais em um país onde as organizações sociais são tão marginalizadas e politicamente tão superficiais (não todas). As organizadas seguem o mesmo caminho. Não dá pra esperar delas uma postura que nenhum (ou quase nenhum) outro movimento organizado da sociedade toma, como essa de ir contra o futebol moderno. As poucas torcidas que vejo tentando seguir algum exemplo de fora acabam copiando as formas estéticas, as faixas, os gritos de guerra, mas não o conteúdo das reivindicações. Mas mesmo assim há organizadas indo contra sim. Um exemplo é a Resistência Coral, do Ferroviáio do Ceará, abertamente anti-capitalista, que leva faixas com dizeres como “paz entre as torcidas, guerra ao Estado”. Normalmente são torcidas menores, frutos de movimentos pequenos, como em geral é o anarquismo e o anti-capitalismo no Brasil. Mesmo assim, nas grandes torcidas aparecem às vezes manifestações nesse sentido. Já citei a Gaviões, que este ano levou faixas contra o preço dos ingressos nos jogos fora de casa do Corinthians. A Mancha Verde, do Palmeiras, também recentemente protestou contra o preço dos ingressos no estádio do clube. Eu acredito que os próprios constrangimentos que o capital imprime junta pessoas em direção a lutas por direitos básicos. Essa história da Copa 2014 e seus estádios a la européia vai dar pano pra manga. Já dá, aliás. Ano passado, acompanhando a final da Taça Brahma no estádio do Palmeiras, vi um monte de gente de Itapevi, cidade periférica da Grande São Paulo, se deslumbrando com o Setor Visa, pedaço do estádio com preços altos e cheio de mordomias. Outras pessoas, ao mesmo tempo, achavam aquilo absurdo, porque elitizava o estádio. A força das organizadas, que a mídia insiste em colocar na violência e na coerção, na verdade reside no fato de que elas são aglutinadoras de gente da periferia, que é quem mais sofre com as restrições do capital. Disso sempre pode surgir algo. E há de lembrar também que na mesma Europa contra o futebol moderno estão torcidas neonazistas, que também são contra o futebol moderno, obviamente por outros motivos. A Eurocopa desse ano mostrou neonazistas croatas com faixas com esses dizeres. Então, temos sempre que pensar as possibilidades dentro das realidades históricas, sociais, políticas de cada lugar. Não dá pra querer no Brasil a força de um movimento anarquista organizado como o grego, por exemplo, do dia pra noite. Mas nem por isso não existem possibilidades ou se deve jogar fora o que há.


Confira o restante desta entrevista no blog do Autônomos FC.


Nós da Ultras Resistência Coral ficamos honrados com a lembrança dos camaradas do Autônomos FC e esperamos ansiosamente pelo dia em que poderemos disputar um racha com os camaradas, de preferência em alguma manifestação com bloqueio de rua!

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá!
Faço parte do Autônomos FC. e estarei em Fortaleza no mês de Janeiro, já olhei a tabela do campeonato e será possível ver um jogo do Ferroviário, gostaria do contato de alguém da torcida para trocar idéia e conhecer pessoalmente.
Meu e-mail é jao@riseup.net
fico no aguardo!
Abraços Libertários