O escritor José Lins do Rego, analista da modalidade até o início da década de 1950, dizia que o conhecimento da história do Brasil passava pela compreensão do futebol. Falecido antes da primeira conquista da seleção brasileira em Mundiais, já discorria, mesmo que inconscientemente, com um viés relacionado ao jogo moderno.
Em maio de 1957, Zé Lins criticava as constantes excursões de clubes brasileiros ao exterior, promovidas por empresários que haviam se especializado nessa atividade. O que ele mesmo incentivara e valorizara tempos antes, como instrumento de representação diplomática ou simplesmente como um produto de exportação, tornara-se, segundo seu próprio julgamento, um mal para o futebol brasileiro. Os clubes expunham seus jogadores a viagens extremamente longas, a mudanças alimentares e a um cansaço físico acentuado, em razão das disputas de muitas partidas em um curto espaço de tempo (ANTUNES, 2004, p. 114).
Diante de um calendário que não permite a manutenção dos clubes brasileiros nesse mercado, forças estrangeiras, como, Real Madrid, Barcelona, Manchester United e Chelsea, por exemplo, conquistaram a Ásia e, consequentemente, um grande espaço para vender seus produtos e a sua grife. Com a realização de parte da pré-temporada fora da terra natal, essas equipes expuseram seus atletas ao que Zé Lins considerava um mal: viagens desgastantes, mudanças alimentares e cansaço provocado pelo grande número de jogos em pouco tempo.
Tal lógica do desgaste dos jogadores parece que foi incorporada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que agenda os amistosos da seleção para o exterior. As atuações da equipe que representaria o Brasil, no próprio país, têm se resumido aos jogos das Eliminatórias Sul-Americanas. E entra em cena um questionamento: brasileiros-estrangeiros ou brasileiros “legítimos” devem ser os responsáveis por representar o verdadeiro estilo de jogo nacional?
Após um processo histórico de mudanças globais nos modos de administrar o futebol, especialmente nas últimas três décadas, a seleção brasileira não consegue hoje traduzir esse mesmo sentimento de representação nacional em torneios e nos chamados amistosos "internacionais". Percebe-se uma transformação não apenas das relações entre a seleção brasileira com os craques brasileiros, em sua grande maioria atuando fora do país, mas também com os torcedores de futebol. Algo que Dunga, entretanto, durante a entrevista coletiva de apresentação do grupo de jogadores selecionados para a disputa da Copa-10, tentou renegar.
“O maior ganho que tivemos até agora foi novamente essa paixão, essa vontade dos jogadores de querer vestir a camisa da seleção brasileira. Há exemplos de sobra. Jogadores campeões que haviam deixado a seleção de lado hoje mostram vontade de defendê-la”, argumentou o comandante.
Dunga fez questão de valorizar o grupo que começou a formar quando assumiu o cargo no fim de julho de 2006. Com cobranças e exigindo lealdade, avisou os jogadores que quem desse a resposta em campo ganharia espaço. Muito por conta disso, apelos populares e midiáticos temporais, como o mais próximo, envolvendo os talentos do Santos, Neymar e Paulo Henrique Ganso, foram ignorados.
“Minha coerência é com os fatos, preciso ter responsabilidade com os jogadores para que eles acreditem no que eu falo. Se eu digo que quem for para campo e der a resposta vai continuar, ele vai continuar. Desde o primeiro dia de trabalho, cada jogador começou a montar sua casinha, a colocar seu tijolo para chegar até hoje conosco”, completou o treinador.
Dos 23 atletas selecionados pelo chefe da comissão técnica da CBF, apenas três (Kleberson, do Flamengo, Gilberto, do Cruzeiro, e Robinho, do Santos) atuam em clubes brasileiros. Prática, aliás, represada em convocações anteriores, inclusive finais, contemplando os representantes para uma Copa.
Como o conceito de globalização é amplo e com diferentes formas de abordagem, o que se discute é o processo de globalização econômica do esporte, com a criação de um mercado não só mundial, mas globalmente conectado, no qual profissionais e produtos circulam livremente, tendo como quase única ferramenta de regulação o poderio econômico.
Levantamento do UOL Esporte explicitou o estereótipo “europeizado” da seleção atual. A altura média dos atletas é de 1,82m e eles são nascidos, em sua maioria, nas regiões Sul e Sudeste. A lista de 2010 também valoriza a experiência: o Brasil que vai à África do Sul tem, em média, 28,6 anos de idade e o peso médio é 76,8kg.
O jogador mais velho é o lateral Gilberto, que esteve em 2006 e hoje tem 34 anos. O mais novo, por sua vez, é o meio-campista Ramires, com 23 e presente nos Jogos Olímpicos de 2008. Os “Meninos da Vila”, entretanto, tampouco se encaixaram no campo da exceção. E um sentido mais “poético” ficará longe da África do Sul.
“No poema do João Cabral de Melo Neto, o autor diz que o futebol brasileiro é evocado na Europa. A bola não é touro, que é inimiga. É preciso dar astúcia de mãos aos pés, no sentido de conseguir fazer com a bola uma arte”, expôs Frederico Barbosa, poeta e diretor da Casa das Rosas, referindo-se a “De um jogador brasileiro a um técnico espanhol”.
Não é a bola alguma cartaque se leva de casa em casa:
é antes telegrama que vaide onde o atiram ao onde cai.
Parado, o brasileiro a fazir onde há-de, sem leva e traz;
com aritméticas de circoele a faz ir onde é preciso;
em telegrama, que é sem tempoele a faz ir ao mais extremo.
Não corre: ele sabe que a bola,Telegrama, mais que corre voa.
João Cabral de Melo Neto
O discurso dele compôs uma mesa de debates intitulada “Futebol-Arte”, parte do I Simpósio de estudos sobre futebol organizado pelo Museu do Futebol, em parceira com a USP e a PUC-SP. Ironicamente, os argumentos que enalteciam a estética do jogo na mesa redonda foram apresentados quase que simultaneamente à divulgação da lista de Dunga.
Barbosa relatou a teoria da comunicação de Roman Jakobson, que fala das funções da linguagem. Uma delas seria a função poética da linguagem, quando ela se volta para si mesma, consciente da sua própria formulação.
“A função poética do futebol talvez passe a existir quando o mesmo está voltado para si, ou seja, algo criticável, como a firula, o mero exibicionismo. O Garrincha, de maneira errada, era taxado por alguns assim, embora ele fosse extremamente rápido e eficiente”, comparou.
“Não temos um time de futebol como o Harlem Globetrotters, por exemplo, que não compete, apenas se exibe. De repente poderia se fazer uma formação dessa: bastava colocar a camisa do Santos e saía jogando por aí...”, brincou Barbosa, citando a performance magistral dos jogadores da Vila Belmiro.
A “defesa ao talento” ganhou contornos na fala de José Geraldo Vinci de Moraes, doutor em História Social e estudioso da relação com a música popular e a história da cultura brasileira. Ele garantiu a condição evolutiva de Ganso e Neymar, com uma sinalização comparativa ao comportamento de outro santista: este, sem parâmetros.
“Na dimensão de quem joga, no confronto entre os corpos, a violência é uma invenção, às vezes. Não há violência no estilo uruguaio, por exemplo. É uma gana inevitável de se querer vencer. Pelé era um cara que sabia se defender no jogo, e muito bem. Os dois garotos do Santos, hoje, também aprenderam”, elencou Moraes.
“O conflito, o confronto entre corpos com tanta violência, faz parte do jogo. Não podemos minimizar”, completou.
Por fim, o psicanalista Thales Ab´Saber, torcedor do Grêmio, a equipe que bateu o Santos na primeira partida das semifinais da Copa do Brasil, traçou um perfil histórico dessa relação entre o viril e o belo.
“O choque dos corpos é agressivo e faz parte da beleza. Eu sei qual é a beleza do time que não se permite perder, apesar de discordar da filosofia do meu time”, argumentou.
“Conversava com meu avô sobre a Copa de 1950. Ele me contou que o Brasil era incrível, tinha o Ademir, o Zizinho, mas o Uruguai tinha um cara chamado Varela, que era um Dunga superior, e no grito e na intensidade nos venceu”, relembrou Thales.
Autor de “Esperando Telê”, documentário desenvolvido ao lado de Rubens Rewald, ele até crê na hipótese levantada por alguns de que a saudosa seleção brasileira de 1982 se hipnotizou consigo mesma. O fato de ser algo tão sublime, tão elevado, poderia tê-la feito pensar que ganhou o torneio no jogo contra a Argentina, antes do enfrentamento com os italianos, no Sarriá.
“Essa dupla dimensão é insolúvel, é dialética. A força, a disposição, a garra, pertence a times que são voltados a isso. O Corinthians, historicamente, é apaixonado, mas não deixa de ser técnico, pois pertence ao futebol brasileiro. São equilíbrios históricos”, traduziu.
“O Brasil é a história do futebol onde se pode colocar o problema: podemos ou não ter um futebol-arte? Em nenhum outro país do mundo isso é possível. Temos essa disponibilidade, esse repertório, e podemos lutar para concretizá-lo. É uma questão séria para nós”, finalizou Thales. Dunga, ao que parece, preferiu não encarar tal batalha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário