29 de dezembro de 2008

Entrevista: José Paulo Florenzano (parte 1)

Cientista social com atuação na área de Antropologia do Esporte conta sobre a Democracia Corintiana e os reflexos desse movimento no futebol atual

Bruno Camarão e Marcelo Iglesias




Um dos períodos mais marcantes da história do futebol brasileiro,principalmente naquilo que se refere à gestão de uma equipe, foi a Democracia Corinthiana. O movimento surgido na década de 1980, sob a liderança de atletas como Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, constituiu o marco de caráter ideológico mais relevante do futebol nacional.
Durante esse período da história da agremiação do Parque São Jorge, todas as decisões importantes, tais como a contratação de atletas, as regras da concentração, entre outras, eram decididas pelo voto dos membros do time – um autêntico processo de auto-gestão do clube.
Um dos maiores pesquisadores sobre esse intervalo de tempo é João Paulo Florenzano, que falou com exclusividade para a Cidade do Futebol. Graduado, mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela PUC-SP, Florenzano tem experiência na área de Antropologia do Esporte.
O futebol é um fato social total, isto é, ele contempla os múltiplos aspectos da vida social, revelando essa realidade com todas as suas linhas de força e contradições. Ou seja, o futebol é reconhecido como um objeto de estudo”, comentou o professor.
Além de tratar do tema da Democracia Corinthiana, ele abordou nesse bate-papo, que será dividido em duas partes – uma indo ao ar nesta sexta, e a segunda na próxima semana, no dia 2 de janeiro – aspectos de rebeldia na modalidade e o jogador-problema (que resultou em uma obra sua referente aos jogadores Afonsinho e Edmundo), as relações de poder, o futebol-força e o corpo-máquina, a figura “sem cor” de Pelé e a criação do Museu no estádio do Pacaembu.
Cidade do Futebol – Uma das características marcantes do futebol é a maneira como ele consegue assumir bem a interdisciplinaridade. Na década de 1980, tem-se um movimento que marca a história da modalidade, a Democracia Corinthiana. O que ela tem de tão relevante para ser lembrada até hoje como um dos maiores movimentos sociais organizados da história do futebol e do Brasil como um todo?
José Paulo Florenzano –A importância dela reside no fato de romper com a hegemonia do modelo do futebol-força, propondo para a modalidade o reequilíbrio entre os exercícios do corpo e os exercícios da mente. A Democracia Corinthiana reintroduz no espaço do futebol as aulas de filosofia, pois se pensarmos o que era o ginasium na antigüidade clássica, vemos que era o local onde os gregos exercitavam o corpo, buscando esculpir o ideal do belo, mas era também onde, por vezes, os filósofos realizavam as suas palestras e diálogos
Portanto, a importância da Democracia Corinthiana está exatamente na busca desse ponto de equilíbrio entre um modelo que se volta a favor do desenvolvimento da força física e um outro que prevê o espaço da reflexão, do questionamento, capaz de religar aquilo que a modernização separou: corpo e alma, atleta e cidadão, o governo de si próprio e o auto-governo coletivo da equipe.
Esse movimento resgata uma tradição de autonomia que percorre a história do futebol brasileiro. Para não precisar citar exemplos tão distantes, na década de 1960, se pensarmos no Santos de Pelé, no Palmeiras de Ademir da Guia, no Cruzeiro do Tostão e no Botafogo do Garrincha, lembraremos dos heróis, das figuras míticas, mas dificilmente nos recordaremos do técnico.
Isso não acontece por acaso, pois a questão é: quem governava essas equipes? Por isso, sem irmos para o extremo oposto e dizermos que, naquele momento, o técnico não possuía nenhum papel, no mínimo, tem-se um equilíbrio em relação a quem comandava uma equipe de futebol.
Então, a Democracia Corinthiana, no início dos anos 1980, irá resgatar a tradição de autonomia e levá-la às últimas conseqüências com a proposta da auto-gestão, que é o ponto culminante desse processo.
Quando o movimento se radicaliza, Mário Travaglini, percebendo esse momento, deixa o Corinthians, e, ao invés do clube buscar outro técnico para substituí-lo, elege-se um representante para a função. É um curto momento, basicamente o mês de abril de 1983. Segundo a manchete do Diário Popular: “Corinthians abole o técnico”. A partir daí, pode-se avaliar o significado dessa experiência.
Cidade do Futebol – Em algum momento da trajetória da Democracia Corinthiana ela demonstrou ser contraditória do ponto de vista do comprometimento dos membros daquele cenário que rodeava a agremiação?
José Paulo Florenzano –Como todo e qualquer movimento social, político e cultural, a Democracia Corinthiana também teve uma série de contradições. A principal delas era o fato de tentar conciliar dois projetos antagônicos: um modelo de futebol empresa, isto é, a Democracia Corinthiana tentava legitimar-se diante dos demais atores do futebol e da imprensa esportiva como uma proposta de modernização do futebol, com inscrição publicitária na camisa e uma série de ações voltadas para esse modelo. Ao mesmo tempo, inclusive porque ela estava inserida no contexto da redemocratização da sociedade brasileira e, nesse sentido, partilhava com uma multiplicidade de sujeitos coletivos, o ideal da autonomia também desenvolve o exercício da democracia direta.
Esses dois aspectos se desenvolvem e vão entrar em choque, porque me parece inconciliável imaginar o modelo da democracia direta no âmbito de um modelo empresarial. O que expressa esse conflito é a contratação do Leão, porque isso vai rachar o grupo. Essa cisão acontece não por conta da personalidade conservadora do goleiro, como as lideranças atribuem, mas à maneira como ele foi contratado.
Esse processo rompe com o pacto estabelecido pelo grupo de que tudo deveria passar pelo crivo, pela discussão e pelo consenso de todos. Quem decide a contratação do Leão são alguns dirigentes e os líderes do grupo, e, em decorrência daquilo que havia sido pactuado, tem-se uma divisão interna no elenco do Corinthians.
A questão é: por que se procedeu dessa maneira na contratação do Leão? É exatamente nesse momento que fica claro o conflito do modelo empresarial e o exercício da democracia direta.
O Corinthians tinha como estratégia globalizar a marca, e buscava, além do Sócrates, outro atleta que tivesse apelo internacional para tornar o clube um candidato interessante para uma excursão no exterior. Por isso, havia urgência em concretizar a contratação do Leão, e o ritmo dos negócios não é o mesmo que aquele que requer o andamento da democracia. Por isso, o Adilson Monteiro Alves (dirigente do Corinthians), juntamente com o técnico, com o preparador físico e com alguns líderes decide pela contratação do goleiro.
Ou seja, esse acordo tem uma razão empresarial, mais do que um motivo técnico que justificasse que o Solito não seria o goleiro ideal para o Corinthians. Afinal, ele havia acabado de ser campeão paulista, em 1982, e o Leão chega no início de 1983.
Cidade do Futebol – Esse pensamento que foi levando em conta no caso do Leão para além das quatro linhas, como um atleta vendável, surge com esse jogador ou existem outros exemplos anteriores? Como se dá esse processo hoje quando, por vezes, inverte-se o valor de campo e o jogador como produto é o que mais importa?
José Paulo Florenzano –Existem outros exemplos, porque o papel do ídolo no futebol, enquanto esse ele pode favorecer o clube e os produtos que se associam ao mesmo é algo muito mais antigo do que se está habituado a reconhecer. Poderíamos mencionar casos desse tipo desde o Friedenreich que fez anúncios publicitários, assim como Leônidas da Silva, o qual foi contratado pelo São Paulo em uma estratégia de popularização do clube. Enfim, esse tipo de estratégia é muito mais freqüente do que parece.
A Democracia Corintiana deparava-se com um contexto econômico de crise brutal, que combinava recessão com inflação. Os clubes precisavam sobreviver. Fica fácil apontar contradições observando-se o processo à distância. Se o Corinthians queria preservar o Sócrates no seu elenco, com o futebol europeu fazendo propostas pelo jogador, o clube tinha que buscar mecanismos para mantê-lo no Brasil. Por isso, a contratação do Leão se insere nesse quadro da necessidade do clube enfrentar o assédio do futebol europeu sobre os seus atletas.
É nesse momento que o futebol italiano começa a se abrir novamente para os estrangeiros. Combinado com isso havia a crise econômica, o que tornava cada vez mais difícil manter-se um elenco com grandes nomes. Portanto, a contratação do Leão também se insere nesse sentido empresarial de fazer caixa para manter os principais jogadores no Corinthians. Logo, a estratégia de globalização da marca e a necessidade de manter um ídolo, o Sócrates, culminaram na chegada do Leão.
Cidade do Futebol – O técnico da Suécia, Lars Lagerbäck, comentou durante a edição deste ano do Footecom que comemora a saída de atletas do seu país, pois não é lá que eles conseguirão evoluir como jogadores. Dentro desse aspecto da transferência de atletas, o Brasil é, atualmente, um dos principais exportadores de jogadores para o futebol de todas as outras partes do planeta. Como ocorre o processo que coloca o país como um dos maiores criadores de talentos do cenário futebolístico mundial?
José Paulo Florenzano –Hoje em dia, existe, no grande palco do futebol que é a Europa, um intercâmbio cada vez maior de jogadores entre os clubes do próprio continente. Além disso, tem-se, mais do que aqueles que são considerados os grandes celeiros (Brasil, Argentina e Uruguai), um olhar voltado para a África, a qual também é um grande exportador de atletas para a Europa.
Voltando à questão empresarial, existem muitos orientais jogando nas grandes ligas da Europa, não só por se tratar de um bom jogador, mas porque é importante tê-los no elenco, visando-se os mercados da China, Coréia e Japão. Daí, podemos pensar no que decide a escalação de um atleta. Seria apenas o critério técnico e a boa forma física ou, ao mesmo tempo, o potencial que ele tem de despertar o interesse de um determinado mercado ou de abri-lo para a marca, para instituição européia?
Historicamente, tem-se Brasil e Argentina, que são economias sem poder para manterem os seus principais atletas e vão constituir-se em formadores dos artistas para o palco principal que está na Europa.
Cidade do Futebol – Qual é o passo que se está dando quando clubes abrem-se para empresas e financiadores de atletas como os casos da Traffic e do Grupo Sondas, do ponto de vista da interferência que esses grupos podem ter na vida das equipes? Isso auxilia na venda do clube internacionalmente como uma marca forte?
José Paulo Florenzano –Na realidade, nós estamos prisioneiros a um modelo global de futebol, e temos que perceber qual é o papel do Brasil nesse cenário. Parece que aqueles que detêm o poder de decisão no futebol brasileiro se saem muito bem na participação que o país tem nesse modelo que é a de fornecer atletas. Por isso, talvez, não haja tanto interesse em reposicionar o Brasil nesse quadro.
Uma segunda questão é que se há a perda da independência econômica, perde-se parte do poder de decisão dentro da instituição. Logo, se um clube fica dependente de empresários, da televisão e de empresas, provavelmente, a agremiação não terá mais soberania na composição da equipe. Isso reflete-se, na realidade, na perda crescente de autonomia das instituições.
A quantidade enorme de dinheiro que circula dentro dos clubes e empresas gera a conseqüência que eu vejo como a mais grave que é o empobrecimento de significados dentro do futebol. Todos nós reproduzimos essa significação econômica e mercantil da modalidade.
Então, vem ao caso, pensar-se o seguinte: o que faz a força de um clube? O São Paulo é a ilustração mais bem sucedida de que uma agremiação se torna de massa, à medida que ela conquista títulos e detém a hegemonia no plano esportivo. Por outro lado, o Corinthians passou mais de 20 anos sem vencer um campeonato paulista e tornou-se um fenômeno sociológico. A torcida corintiana daquele tempo se consolida como uma torcida de massa. O Corinthians também conquista dois campeonatos estaduais com a Democracia Corintiana e se torna um objeto de estudo da academia.
Esses exemplos mostram que a força cultural de um clube não é tão dependente quanto parece do fato dele obter títulos. Existem outros vínculos do clube, da metrópole e da identidade que ele proporciona a determinados segmentos nessa metrópole e até em escala global.
Cidade do Futebol – Algo que se tornou raro no futebol mundial é o atleta que se identifica com o clube e vice-versa, o chamado “jogador símbolo” de uma equipe, como é o caso dos goleiros Rogério Ceni e Marcos com o São Paulo e o Palmeiras, respectivamente. Como você enxerga essa carência de profissionais com laços fortes com as agremiações, fato que se via com maior freqüência em outros tempos com o Santos de Pelé, o Palmeiras de Ademir da Guia, o Botafogo de Garrincha, o Corinthians de Rivelino, entre outros?
José Paulo Florenzano –Eu penso que existe muita idealização desse pensamento do amor à camisa. Muitos atletas que tiveram amor à camisa acabaram na miséria. Por outro lado, existe uma perda de identidade, de se mencionar o nome de um jogador e, rapidamente, lembrar-se do clube em que ele atua.
No entanto, é bom que exista esse transito intenso. Eu não vejo essa movimentação como algo negativo, até mesmo em casos de atletas que foram ídolos em uma agremiação e têm a coragem de recomeçarem a carreira no clube rival. Isso, no mínimo, suscita uma problematização sobre a identidade desses clubes.
Por isso, podemos olhar essa questão de um ângulo diferente daquele que é comumente abordado. Eu não entendo esse fato como algo ruim para o debate do futebol. Um atleta identificado com um clube durante muitos anos vai jogar no elenco rival. O que isso representa? O que acarreta de mudanças nas duas agremiações?
Um exemplo que, na verdade, não é tão radical quanto um jogador passar de um clube para o rival, mas que mostra como é bom o trânsito dentro do futebol é o do Sócrates. Ele entra no Corinthians em 1978 como, talvez, o mais anti-corintiano dos atletas, porque o estereótipo do jogador corintiano é aquele que joga com raça, que se doa ao máximo. Mas, o estilo de jogo do Sócrates não era esse, ele era um artista, um artesão. Então, a contratação de um atleta que, talvez, se sentisse mais à vontade na academia do Palmeiras, com um time de mais toque de bola, que possuía o ritmo do Ademir da Guia, e não a correria do Wladimir e do Corinthians, coloca em questão a mitologia corintiana de jogar com raça. O Sócrates vai colocar em crise esse ideal, e ambos se transformam.
É extraordinário perceber-se como a entrada do Sócrates obriga a torcida do Corinthians a se readaptar a um ritmo de jogo que ele vai estabelecer, e, inversamente, como ele também tem que fazer concessões. O Sócrates também vai dar carrinho, também vai fazer gols e se emocionar, rompendo um pouco com a frieza que ele construía em torno de si.
Portanto, eu não vejo essa movimentação como um problema. É claro que se tem, mais no Brasil do que na Europa, a perda total de vínculo se o jogador fica dois ou três meses em uma agremiação e, de repente, já está em outra, e as pessoas mal conseguem montar a escalação do seu time.
Se visto desse prisma, isso é um problema. Porém, eu acredito que não devemos cair no saudosismo de achar que era um mar de rosas, o atleta que, por muitas vezes, passava uma vida inteira em um clube e não saía, em certos casos, não por amor à camisa, mas porque, na época, havia a Lei do Passe e ele não tinha força política suficiente para romper com o clube.
Cidade do Futebol – Levando-se em conta o seu comentário de que o Sócrates teve que se adaptar ao estilo de jogo do Corinthians e a torcida corintiana à forma de jogar desse atleta, ainda é possível fazer uma relação entre os perfis do clube e das suas respectivas torcidas? O São Paulo é atualmente o verdadeiro time do povo?
José Paulo Florenzano –A identidade de um clube também sofre mudanças ao longo do tempo. Por exemplo, o Palestra Itália foi fundado para representar os diversos grupos italianos em São Paulo. Era ele que conferia essa identidade italiana a essas comunidades. Em um determinado momento, ele é obrigado a mudar de nome e se transforma em Palmeiras e, a partir daí, abre-se para outros grupos dentro da sociedade.
O Corinthians, ao contrário do que diz o mito fundador, é um clube que, como todos os demais, teve uma postura restritiva, chegando a barrar os jogadores negros, em um momento em que havia um grande preconceito em relação a esse grupo. Aos poucos, o Corinthians vai se tornar um clube de massa e, ao longo desse percurso, ele passa a representar dentro de São Paulo dois grandes grupos. Os descendentes de escravos, tomando o lugar de várias outras agremiações que haviam sido fundadas para representá-los. Não é a toa que o Wladimir dizia que ele sentia a identificação dele com a torcida à flor da pele.
Outro grupo do qual o Corinthians vai se beneficiar é dos nordestinos. O clube é quase que um rito de integração do migrante que vem do nordeste do país na sociedade paulistana. Dessa maneira, o time de Parque São Jorge consegue se implantar como clube de massa.
Hoje, porém, o Corinthians vive um conflito, pois a categoria “povo” foi posta em crise pela globalização e pelo Liberalismo, o que gerou uma crise de identidade no clube.
Por outro lado, o São Paulo que, historicamente, é identificado como um clube da elite, por conta de uma estratégia que passa pela construção do Morumbi em 1970, pela criação de centros de treinamento, pela aposta na preparação física, na elaboração de uma comissão técnica permanente, e pela constituição de uma “máquina de guerra”, é o exemplo mais bem acabado de uma estratégia de um clube para se tornar uma equipe de massa.
Portanto, percebe-se que, ao longo do século XX, esses clubes mudaram de posição, incorporando novos grupos nas suas respectivas identidades.
Cidade do Futebol – Por exemplo, a contratação do Bobô, que havia se destacado pelo Bahia, e foi jogar no São Paulo, ou a ida do Enéas para o Palmeiras, são contratações que não são feitas de maneira desinteressada. Existe uma intenção específica nesse tipo de aposta, tanto na construção da identidade do clube como na atração de certos tipos de torcedores? Pode-se apontar, hoje, o São Paulo como o verdadeiro “time do povo”?
José Paulo Florenzano –No caso do São Paulo, esse tipo de contratação passa pelas contratações de Leônidas da Silva, e depois pela do Didi, que teve uma curta passagem pelo clube, nos anos 1950. Outro caso, como foi citado, foi o do Bobô. Porém, não sei até que ponto essas contratações podem ser incluídas na conta de uma estratégia de popularização do clube, mas certamente, esse fator também é um efeito que deve ser levado em consideração.
Um fato real referente a esse aspecto é que o Corinthians está lapidando o seu capital simbólico, a sua identidade de clube do povo. Hoje, ele vê a sombra do São Paulo, que conseguiu uma forte penetração nas camadas populares, além da enorme dificuldade que há no elenco corintiano de se reafirmar como um time de raça. Mesmo porque a categoria “povo” se dissolveu.
Mais ainda, talvez como um paradoxo, à medida que o Corinthians se aproxima dessas parcerias milionárias, e suspeitas em alguns casos, ele tem uma perda dessa imagem do clube onde o atleta tem que se doar ao máximo, que é a torcida que tem um time e não um time que tem uma torcida. Todo esse sistema de significados sofre um pouco com esses modelos de acordos.
Cidade do Futebol – Trazer o futebol para dentro da academia ainda é algo difícil no Brasil para abordá-lo nos seus meandros mais sociológicos e históricos?
José Paulo Florenzano –Já houve uma mudança muito significativa. Ficou para trás a idéia do futebol como o “ópio do povo”, discurso que associava a modalidade a um mecanismo de alienação e um certo preconceito que impedia a academia de reconhecer o futebol como um objeto de estudo e um acesso privilegiado para a compreensão da realidade brasileira.
Atualmente, têm-se, em várias universidades, núcleos de estudo e pesquisa com uma massa significativa de trabalhos, dissertações, teses sobre esse tema abordado-o de diferentes ângulos (da psicologia, da sociologia, da história, da antropologia, da economia, etc).
O futebol é um fato social total, isto é, ele contempla os múltiplos aspectos da vida social, revelando essa realidade com todas as suas linhas de força e contradições. Ou seja, o futebol é reconhecido como um objeto de estudo. Quanto a isso, eu não tenho a menor dúvida.
Cidade do Futebol – Recentemente, foi inaugurado o Museu do Futebol. Nele, há algumas referências à figura de Charles Müller, ratificando-o como principal introdutor da modalidade no país. No entanto, existem algumas divergências quanto a essa questão. Como você avalia esses fatos conflitantes e a própria iniciativa da criação desse museu?
José Paulo Florenzano –O Museu do Futebol é uma idéia extraordinária e, aos poucos, ele irá se aprimorando, com a contribuição de jornalistas e historiadores, e com a participação dos seus assessores.
No caso do Charles Müller, alguns historiadores brasileiros já colocaram em cheque a leitura de que ele é o introdutor do futebol no Brasil e o grande responsável pela difusão da modalidade no país. Na realidade, ele foi a pessoa que difundiu o futebol dentro dos grupos aristocráticos.
Mas como diz José Geraldo Couto, “o futebol no Brasil já nasce com a marca da diversidade”. Ou seja, ele se propaga com extrema facilidade e rapidez em outros campos como a várzea e as fábricas.
Cidade do Futebol – A maneira de falar na terceira pessoa e o distanciamento em relação à luta racial direta foram fatores que contribuíram para que o Pelé se destacasse no futebol em nível mundial?
José Paulo Florenzano – É muito difícil manter-se na trajetória que o Pelé conseguiu ficar, com todo o sucesso por ele obtido. Esse autocontrole ao longo de toda a sua carreira, é um ponto que merece ser destacado. Logo, esse aspecto dele falar sobre ele mesmo afastando-se da figura Pelé é o mínimo que podemos citar nesse sentido.
Sem isso, dificilmente ele teria se comportado corretamente diante da projeção que o nome dele teve no mundo, de toda a idolatria que há em torno da sua figura, de como ele foi utilizado pelo regime militar, entre outros fatores.
Em relação à questão racial, ele foi bastante cobrado por não ter tomado uma postura mais explícita de condenação ao racismo dentro da sociedade brasileira. Por isso, ele passa como alguém que reproduziu o discurso da democracia racial supostamente existente no Brasil.
No entanto, o que ele significou para os negros dentro do Brasil e na América? Nesse sentido, se percebe que o Pelé desempenhou um papel muito grande na reelaboração da identidade negra. Isso passa pela admiração que o Bob Marley tinha em relação a esse atleta brasileiro, pela maneira como ele incandescia o imaginário dos países africanos e de outros lugares.
Portanto, bem feitas as contas, o Pelé teve uma participação significativa em um processo mais amplo de tomada de consciência da questão racial no Brasil, embora, explicitamente, ele não tenha elaborado um discurso contundente a respeito disso.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo post!

Parabéns! Oi!