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16 de agosto de 2010

Bola da Vez: Andrew Jennings

Entrevista do Bola da Vez dia 14 de Agosto de 2010
ESPN Brasil

Em entrevista ao programa Bola da Vez, ele afirmou que a reputação do brasileiro só é boa por aqui e denunciou pelo menos dois graves casos na passagem de Havelange pela Fifa.
Jennings é mais crítico ainda com Jack Warner, vice-presidente da Fifa. O jornalista chega a analisar que o mundo seria melhor sem ele.
Andrew Jennings também disse ter conhecimento da operação nos bastidores que trouxe a vitória à candidatura de Londres para ser sede da Olimpíada de 2012

Parte 1:



Assista as demais partes da entrevista:

10 de agosto de 2010

Sócrates, revolucionário da bola, afirma: "Sou e morrerei socialista!"

Sócrates (ao centro) em ato pelas Diretas-Já!, em 1984


Aos dezessete anos de idade Sócrates vivia um dilema: continuar a jogar futebol nas categorias de base do Botafogo de Ribeirão Preto, então time da primeira divisão do futebol paulista, ou dedicar-se exclusivamente a recém iniciada faculdade de medicina.

Com dificuldade conciliou as duas atividades nos primeiros anos de estudo. Quando se tornou profissional passou a receber convites de diversos clubes grandes, mas afirmou só sair do Botafogo depois de formado. Assim, chegou ao Corinthians e ficou c
onhecido como Doutor Sócrates.

Um dos líderes da democracia corinthiana e jogador da seleção brasileira nas copas de 82 e 86, Sócrates é considerado um dos grandes jogadores da história do Brasil.

Homem de respostas curtas e claras, consciência política e posições fortes, o Doutor conversou com o Unificados sobre a democracia corinthiana, socialismo, e claro, a seleção do Dunga.

ENTREVISTA
“Devemos lutar por democracia em qualquer estrutura social”


Unificados: Você sempre fugiu do padrão comum do jogador de futebol, tem consciência política, foi um dos lideres da democracia corinthiana, como isso surgiu?

Sócrates: Sei lá. O diferente não sou eu. O problema é o sistema educacional brasileiro que não dá oportunidade a todos, muito menos aos jogadores de futebol.

Unificados: Você ainda se considera socialista? Como vê o socialismo hoje?

Sócrates: Sou e morrerei assim. O socialismo idealizado não tem hoje nem nunca, só sempre.

Unificados: Acha que um movimento semelhante à democracia corinthiana poderia acontecer em algum clube atualmente?

Sócrates: Eu acho que sim. E também acredito que devemos lutar por democracia em qualquer estrutura social, inclusive no futebol. Particularmente, sempre achei um absurdo viver em um regime de casta, isso vem da origem do meu pai.

Ele nasceu pobre, fodido e não tinha o que comer. Então esse sentimento sempre foi muito claro para mim, por que casta? Por que as pessoas são tratadas de forma diferente? Esse sentimento nasceu comigo e você vai elaborando com o tempo.
Mas isso é uma coisa interiorizada, tentar lutar contra isso depende das oportunidades que você tem na vida. E aconteceu no Corinthians em uma época de crise e só existe revolução em crise. Ou então em guerra.


Unificados: A democracia corinthiana teve algum efeito no comportamento dos jogadores dentro de campo? E como foi a recepção dos jogadores e dirigentes de outros times?
Sócrates: Quem se sente tratado como deve sempre reage positivamente. Foi isso que aconteceu. Todos nós reagimos positivamente, e a reação dos demais pouco importa.

Ali aconteceu uma revolução porque as pessoas queriam fazer revolução, estavam juntas em um momento propício para isso. Se fosse em outro momento talvez não acontecesse nada.

Unificados: Como o movimento acabou? Isso teve a ver com sua ida para a Itália?

Sócrates: Um movimento revolucionário só ocorre na sociedade que o quer. Quando inventamos ou estamos em outra sociedade, esta caminha de acordo com a maioria dos seus integrantes e interesses.

Eu saí, o Casão (Walter Casagrande, hoje comentarista na Globo) saiu, mais gente saiu e contrataram outros 10 caras, com outra cabeça. O momento mudou, acabou porque tinha que acabar.
Eu fui para a Itália por causa das Diretas Já. Fiquei frustrado com o resultado da votação no Congresso. Fui embora.


Unificados: Muito se falou das atitudes do Dunga nessa Copa do Mundo, o que achou do desempenho da seleção?
Sócrates: Compatível com o esperado. Os jogadores estavam quebrados. O Dunga não levou os principais talentos do Brasil, aquela seleção não era a representação do país.

Unificados: E de afirmações do Dunga, que falou que não poderia dizer se a escravidão tinha sido boa ou ruim, e nem a ditadura?

Sócrates: Um pouco de literatura não faz mal a ninguém, muito pelo contrario. Quem não lê e não quer saber como o homem se comportou em outros tempos é um absoluto alienado ou analfabeto.

Unificados: Esse ano temos eleições legislativas, como você vê o cenário político atual no Brasil?

Sócrates: O país está em evolução. Seja lá quem forem os políticos eleitos, que ninguém altere este cenário para pior. Para melhor, por favor!

Dr. Sócrates "Magrão" comemora gol pelo Corinthians


Fonte: Site do Sindicato Quimicos unificados

17 de julho de 2010

Sócrates: "Imagina a Gaviões da Fiel politizada! Esse é o grande medo do sistema"

Como você está vendo a organização da Copa do Mundo aqui no Brasil daqui a quatro anos?
Sócrates
Aqui no Brasil, ainda não há organização nenhuma, pelo que eu saiba. Na verdade, existe uma desorganização dirigida para que os investimentos que sejam alocados nas obras não passem por licitações, então estão protelando o máximo possível para que isso ocorra.

Você acha que é intencional?
É claro! Isso aconteceu no Pan-Americano, acontece sempre. Quanto mais demorado melhor, porque aí tudo é feito a toque de caixa, e a toque de caixa tem situação emergencial que vale a pena para desviar alguma coisa.

Você acha que a exclusão do Morumbi como um estádio da Copa tem a ver com isso?
Não tenho dúvida. Eles querem construir um outro estádio. Desde o começo estava na cara, criaram todo tipo de dificuldade. E acho que o São Paulo fez certo, fazer um investimento de 700 milhões no Morumbi? É mais fácil o São Paulo construir outro estádio.

Você acha que o interesse é mais econômico ou político?
É para-econômico. Não é nem econômico. Economicamente não poderíamos escolher Manaus em vez de Belém. Cuiabá como sede, onde eles vão ter que construir o estádio para depois ficar parado, Brasília a mesma coisa, Natal a mesma coisa. É não é interesse econômico. É desperdício de dinheiro. Desperdício econômico. É para-econômico, para desviar verba.

Você não vê o fato de o São Paulo ter encabeçado uma chapa de oposição na eleição do Clube dos 13 como um elemento para a exclusão?
Não, isso vem lá de fora. Todos os estádios vão ser reformados. Alguns com um custo absurdo. Deve ser a quinta ou sexta vez que fazem reforma no Maracanã nos últimos três anos. O Minerão também. Vão construir outro na Bahia. Entendeu? É pro dinheiro andar. Andando o dinheiro alguém tá ganhando. Seja quem constrói, quem administra. O único que não ganha é o povo.

Você sempre diz que atualmente o futebol tem mais força do que arte. Você acha que a Copa de 1982 foi um marco na consolidação do esporte como está hoje?
Não existe um divisor aí. O que ocorre é uma falta de adaptação do futebol com a evolução física dos atletas. A questão não é só filosófica, claro que isso faz parte do processo. Mas ela é muito mais dependente da questão física. Inclusive na minha tese de mestrado, seria nove contra nove, tirar dois jogadores de cada time. Quer dizer, você resgatar os espaços que tínhamos há anos atrás. Então vão ter que jogar. Hoje tem gente que se esconde. Você pega um back central da vida ai que não sai do lugar. A única coisa que ele faz é chutar a bola pra frente, pro lado, isso não é jogar futebol. Com nove contra nove, o back central vai ter que saber jogar. Não só ele, todos vão ter que saber jogar, porque a bola vai correr. Na verdade o futebol é um dos poucos esportes que não se adaptou a essa evolução. Imagine uma prova de atletismo, 100 metros, hoje, com cronômetro manual... Iria dar empate para caramba. Ou 50 metros na piscina. Tem que se adaptar a isso. E futebol não mudou nada. Não quer mudar. Nem tecnologia se utiliza para se dirimir as dúvidas de arbitragem.

Você não acha que essa não adaptação beneficia maus jogadores, que mesmo não tendo tanto talento, mantêm contratos milionários?
Hoje, na verdade, se nivelou o futebol. Um ou outro jogador que se destaca, que tem mais técnica, mais talento. Na verdade, todo mundo privilegia o físico hoje e é isso que impera no futebol. Seja na seleção de Honduras, você comparar com a seleção da Inglaterra. Você vê as equipes que se classificaram, tem time que nunca passou para a segunda fase e tem um monte na segunda fase, tá tão igual.

Como foi a democracia corinthiana?
Uma sociedade que decidia tudo no voto e a maioria simples levava vantagem nas decisões, absolutamente democrático. O roupeiro tinha o mesmo peso de voto de um dirigente.

Como a direção do time reagiu? Não só a direção, mas os patrocinadores, o Leão quis dar uma pernada?
O Leão não dava pernada em ninguém, ele nunca votou ué. Um voto nulo, em branco. Se você não quer participar de uma sociedade você não vota e agüente a decisão da maioria. A direção participava, um voto era da direção do clube e não tinha patrocinador, nessa época não tinha essas coisas.

Esse foi um dos poucos momentos em que o futebol cumpriu um papel mais positivo politicamente?
Na verdade cumpriu um papel importante nesse processo de redemocratização, porque o processo corintiano começou dois anos antes da grande mobilização das Diretas Já! Acho que foi um fator importantíssimo na discussão da realidade política brasileira. Você está dentro de um meio extremamente popular, com uma linguagem que é acessível a todo mundo está discutindo uma coisa que há muito tempo ninguém ou muita gente jamais teve a possibilidade de efetuar, que era o voto. Foi importantíssimo. Igual a isso eu não conheço nada parecido no futebol.

Você acha que o futebol pode cumprir um papel mais progressivo?
Claro. E esse é o grande medo do sistema. Você imagina a Gaviões da Fiel politizada. Né!? Você tem mobilização já pronta, você tem palco, duas vezes por semana, para exercer o seu direito, a ação política, só falta a politização.

Falta organização política para os jogadores?
Falta consciência! Falta... Por isso o sistema deseduca esses caras. Em vez de educar, faz de tudo para o cara não adquirir uma consciência social, política, porque esse é o mais importante. Ele é mais ouvido que o Presidente da República, esse cara pode mudar o país. Uma das brigas que eu tenho é “por que não educar esse povo, se é obrigação do Estado educar todo mundo?”. Pelo menos esse povo tem que ser educado. Agora mesmo, fui para a África do Sul, uma campanha pró-educação, inclusive com iniciativa da Fifa, com chancela da ONU, Educação Global, que é uma das metas do milênio, até 2015 pôr todas as crianças na escola. Então, no caso da Fifa, ponha primeiro os jogadores. (risos)

Você acha que o Estado deveria cumprir um papel mais importante na gestão do esporte?
É claro! Mas ninguém quer mexer muito nisso. Ninguém quer mexer, porque é um vespeiro. Mas deveria. Particularmente o futebol no Brasil é um negócio, como outro qualquer. Por que o Estado não tem controle sobre isso. Ele usa todos os símbolos nacionais, hino, bandeira, até a alma do brasileiro ele usa.

Você acha que o Estado deveria intervir para tentar segurar os jogadores no Brasil?
Já existe legislação para isso. O trabalho infantil ele é penalizado. Mas como você vai evitar que uma criança se transfira para outro país dentro das condições legais, quer dizer, arrumam emprego para os pais, os caras sempre fazem aquilo que precisa ser feito. Isso só vai ser educado quando tivermos consciência de que temos que valorizar a ‘commodite’ que temos em mão. Que é a qualidade do jogador brasileiro, o talento do jogador brasileiro. Em vez de vez de vender o artista, tem que vender a obra dele. Quando a gente começar a vender a obra dele, a gente vai ter muito mais riqueza. Um bom exemplo é o Ronaldo. O Ronaldo é um cara que vale ouro, que veio pra cá e está ganhando o mesmo que estava ganhando lá, ou mais. Então é possível sim, mas é uma mudança de mentalidade. Na verdade o futebol brasileiro vende seu artista porque também é uma forma mais fácil de se manipular os recursos. Nem todo dinheiro que saí de lá chega aqui, no meio do caminho tem muita gente intermediária.

29 de dezembro de 2008

Entrevista: José Paulo Florenzano (parte 1)

Cientista social com atuação na área de Antropologia do Esporte conta sobre a Democracia Corintiana e os reflexos desse movimento no futebol atual

Bruno Camarão e Marcelo Iglesias




Um dos períodos mais marcantes da história do futebol brasileiro,principalmente naquilo que se refere à gestão de uma equipe, foi a Democracia Corinthiana. O movimento surgido na década de 1980, sob a liderança de atletas como Sócrates, Wladimir, Casagrande e Zenon, constituiu o marco de caráter ideológico mais relevante do futebol nacional.
Durante esse período da história da agremiação do Parque São Jorge, todas as decisões importantes, tais como a contratação de atletas, as regras da concentração, entre outras, eram decididas pelo voto dos membros do time – um autêntico processo de auto-gestão do clube.
Um dos maiores pesquisadores sobre esse intervalo de tempo é João Paulo Florenzano, que falou com exclusividade para a Cidade do Futebol. Graduado, mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela PUC-SP, Florenzano tem experiência na área de Antropologia do Esporte.
O futebol é um fato social total, isto é, ele contempla os múltiplos aspectos da vida social, revelando essa realidade com todas as suas linhas de força e contradições. Ou seja, o futebol é reconhecido como um objeto de estudo”, comentou o professor.
Além de tratar do tema da Democracia Corinthiana, ele abordou nesse bate-papo, que será dividido em duas partes – uma indo ao ar nesta sexta, e a segunda na próxima semana, no dia 2 de janeiro – aspectos de rebeldia na modalidade e o jogador-problema (que resultou em uma obra sua referente aos jogadores Afonsinho e Edmundo), as relações de poder, o futebol-força e o corpo-máquina, a figura “sem cor” de Pelé e a criação do Museu no estádio do Pacaembu.
Cidade do Futebol – Uma das características marcantes do futebol é a maneira como ele consegue assumir bem a interdisciplinaridade. Na década de 1980, tem-se um movimento que marca a história da modalidade, a Democracia Corinthiana. O que ela tem de tão relevante para ser lembrada até hoje como um dos maiores movimentos sociais organizados da história do futebol e do Brasil como um todo?
José Paulo Florenzano –A importância dela reside no fato de romper com a hegemonia do modelo do futebol-força, propondo para a modalidade o reequilíbrio entre os exercícios do corpo e os exercícios da mente. A Democracia Corinthiana reintroduz no espaço do futebol as aulas de filosofia, pois se pensarmos o que era o ginasium na antigüidade clássica, vemos que era o local onde os gregos exercitavam o corpo, buscando esculpir o ideal do belo, mas era também onde, por vezes, os filósofos realizavam as suas palestras e diálogos
Portanto, a importância da Democracia Corinthiana está exatamente na busca desse ponto de equilíbrio entre um modelo que se volta a favor do desenvolvimento da força física e um outro que prevê o espaço da reflexão, do questionamento, capaz de religar aquilo que a modernização separou: corpo e alma, atleta e cidadão, o governo de si próprio e o auto-governo coletivo da equipe.
Esse movimento resgata uma tradição de autonomia que percorre a história do futebol brasileiro. Para não precisar citar exemplos tão distantes, na década de 1960, se pensarmos no Santos de Pelé, no Palmeiras de Ademir da Guia, no Cruzeiro do Tostão e no Botafogo do Garrincha, lembraremos dos heróis, das figuras míticas, mas dificilmente nos recordaremos do técnico.
Isso não acontece por acaso, pois a questão é: quem governava essas equipes? Por isso, sem irmos para o extremo oposto e dizermos que, naquele momento, o técnico não possuía nenhum papel, no mínimo, tem-se um equilíbrio em relação a quem comandava uma equipe de futebol.
Então, a Democracia Corinthiana, no início dos anos 1980, irá resgatar a tradição de autonomia e levá-la às últimas conseqüências com a proposta da auto-gestão, que é o ponto culminante desse processo.
Quando o movimento se radicaliza, Mário Travaglini, percebendo esse momento, deixa o Corinthians, e, ao invés do clube buscar outro técnico para substituí-lo, elege-se um representante para a função. É um curto momento, basicamente o mês de abril de 1983. Segundo a manchete do Diário Popular: “Corinthians abole o técnico”. A partir daí, pode-se avaliar o significado dessa experiência.
Cidade do Futebol – Em algum momento da trajetória da Democracia Corinthiana ela demonstrou ser contraditória do ponto de vista do comprometimento dos membros daquele cenário que rodeava a agremiação?
José Paulo Florenzano –Como todo e qualquer movimento social, político e cultural, a Democracia Corinthiana também teve uma série de contradições. A principal delas era o fato de tentar conciliar dois projetos antagônicos: um modelo de futebol empresa, isto é, a Democracia Corinthiana tentava legitimar-se diante dos demais atores do futebol e da imprensa esportiva como uma proposta de modernização do futebol, com inscrição publicitária na camisa e uma série de ações voltadas para esse modelo. Ao mesmo tempo, inclusive porque ela estava inserida no contexto da redemocratização da sociedade brasileira e, nesse sentido, partilhava com uma multiplicidade de sujeitos coletivos, o ideal da autonomia também desenvolve o exercício da democracia direta.
Esses dois aspectos se desenvolvem e vão entrar em choque, porque me parece inconciliável imaginar o modelo da democracia direta no âmbito de um modelo empresarial. O que expressa esse conflito é a contratação do Leão, porque isso vai rachar o grupo. Essa cisão acontece não por conta da personalidade conservadora do goleiro, como as lideranças atribuem, mas à maneira como ele foi contratado.
Esse processo rompe com o pacto estabelecido pelo grupo de que tudo deveria passar pelo crivo, pela discussão e pelo consenso de todos. Quem decide a contratação do Leão são alguns dirigentes e os líderes do grupo, e, em decorrência daquilo que havia sido pactuado, tem-se uma divisão interna no elenco do Corinthians.
A questão é: por que se procedeu dessa maneira na contratação do Leão? É exatamente nesse momento que fica claro o conflito do modelo empresarial e o exercício da democracia direta.
O Corinthians tinha como estratégia globalizar a marca, e buscava, além do Sócrates, outro atleta que tivesse apelo internacional para tornar o clube um candidato interessante para uma excursão no exterior. Por isso, havia urgência em concretizar a contratação do Leão, e o ritmo dos negócios não é o mesmo que aquele que requer o andamento da democracia. Por isso, o Adilson Monteiro Alves (dirigente do Corinthians), juntamente com o técnico, com o preparador físico e com alguns líderes decide pela contratação do goleiro.
Ou seja, esse acordo tem uma razão empresarial, mais do que um motivo técnico que justificasse que o Solito não seria o goleiro ideal para o Corinthians. Afinal, ele havia acabado de ser campeão paulista, em 1982, e o Leão chega no início de 1983.
Cidade do Futebol – Esse pensamento que foi levando em conta no caso do Leão para além das quatro linhas, como um atleta vendável, surge com esse jogador ou existem outros exemplos anteriores? Como se dá esse processo hoje quando, por vezes, inverte-se o valor de campo e o jogador como produto é o que mais importa?
José Paulo Florenzano –Existem outros exemplos, porque o papel do ídolo no futebol, enquanto esse ele pode favorecer o clube e os produtos que se associam ao mesmo é algo muito mais antigo do que se está habituado a reconhecer. Poderíamos mencionar casos desse tipo desde o Friedenreich que fez anúncios publicitários, assim como Leônidas da Silva, o qual foi contratado pelo São Paulo em uma estratégia de popularização do clube. Enfim, esse tipo de estratégia é muito mais freqüente do que parece.
A Democracia Corintiana deparava-se com um contexto econômico de crise brutal, que combinava recessão com inflação. Os clubes precisavam sobreviver. Fica fácil apontar contradições observando-se o processo à distância. Se o Corinthians queria preservar o Sócrates no seu elenco, com o futebol europeu fazendo propostas pelo jogador, o clube tinha que buscar mecanismos para mantê-lo no Brasil. Por isso, a contratação do Leão se insere nesse quadro da necessidade do clube enfrentar o assédio do futebol europeu sobre os seus atletas.
É nesse momento que o futebol italiano começa a se abrir novamente para os estrangeiros. Combinado com isso havia a crise econômica, o que tornava cada vez mais difícil manter-se um elenco com grandes nomes. Portanto, a contratação do Leão também se insere nesse sentido empresarial de fazer caixa para manter os principais jogadores no Corinthians. Logo, a estratégia de globalização da marca e a necessidade de manter um ídolo, o Sócrates, culminaram na chegada do Leão.
Cidade do Futebol – O técnico da Suécia, Lars Lagerbäck, comentou durante a edição deste ano do Footecom que comemora a saída de atletas do seu país, pois não é lá que eles conseguirão evoluir como jogadores. Dentro desse aspecto da transferência de atletas, o Brasil é, atualmente, um dos principais exportadores de jogadores para o futebol de todas as outras partes do planeta. Como ocorre o processo que coloca o país como um dos maiores criadores de talentos do cenário futebolístico mundial?
José Paulo Florenzano –Hoje em dia, existe, no grande palco do futebol que é a Europa, um intercâmbio cada vez maior de jogadores entre os clubes do próprio continente. Além disso, tem-se, mais do que aqueles que são considerados os grandes celeiros (Brasil, Argentina e Uruguai), um olhar voltado para a África, a qual também é um grande exportador de atletas para a Europa.
Voltando à questão empresarial, existem muitos orientais jogando nas grandes ligas da Europa, não só por se tratar de um bom jogador, mas porque é importante tê-los no elenco, visando-se os mercados da China, Coréia e Japão. Daí, podemos pensar no que decide a escalação de um atleta. Seria apenas o critério técnico e a boa forma física ou, ao mesmo tempo, o potencial que ele tem de despertar o interesse de um determinado mercado ou de abri-lo para a marca, para instituição européia?
Historicamente, tem-se Brasil e Argentina, que são economias sem poder para manterem os seus principais atletas e vão constituir-se em formadores dos artistas para o palco principal que está na Europa.
Cidade do Futebol – Qual é o passo que se está dando quando clubes abrem-se para empresas e financiadores de atletas como os casos da Traffic e do Grupo Sondas, do ponto de vista da interferência que esses grupos podem ter na vida das equipes? Isso auxilia na venda do clube internacionalmente como uma marca forte?
José Paulo Florenzano –Na realidade, nós estamos prisioneiros a um modelo global de futebol, e temos que perceber qual é o papel do Brasil nesse cenário. Parece que aqueles que detêm o poder de decisão no futebol brasileiro se saem muito bem na participação que o país tem nesse modelo que é a de fornecer atletas. Por isso, talvez, não haja tanto interesse em reposicionar o Brasil nesse quadro.
Uma segunda questão é que se há a perda da independência econômica, perde-se parte do poder de decisão dentro da instituição. Logo, se um clube fica dependente de empresários, da televisão e de empresas, provavelmente, a agremiação não terá mais soberania na composição da equipe. Isso reflete-se, na realidade, na perda crescente de autonomia das instituições.
A quantidade enorme de dinheiro que circula dentro dos clubes e empresas gera a conseqüência que eu vejo como a mais grave que é o empobrecimento de significados dentro do futebol. Todos nós reproduzimos essa significação econômica e mercantil da modalidade.
Então, vem ao caso, pensar-se o seguinte: o que faz a força de um clube? O São Paulo é a ilustração mais bem sucedida de que uma agremiação se torna de massa, à medida que ela conquista títulos e detém a hegemonia no plano esportivo. Por outro lado, o Corinthians passou mais de 20 anos sem vencer um campeonato paulista e tornou-se um fenômeno sociológico. A torcida corintiana daquele tempo se consolida como uma torcida de massa. O Corinthians também conquista dois campeonatos estaduais com a Democracia Corintiana e se torna um objeto de estudo da academia.
Esses exemplos mostram que a força cultural de um clube não é tão dependente quanto parece do fato dele obter títulos. Existem outros vínculos do clube, da metrópole e da identidade que ele proporciona a determinados segmentos nessa metrópole e até em escala global.
Cidade do Futebol – Algo que se tornou raro no futebol mundial é o atleta que se identifica com o clube e vice-versa, o chamado “jogador símbolo” de uma equipe, como é o caso dos goleiros Rogério Ceni e Marcos com o São Paulo e o Palmeiras, respectivamente. Como você enxerga essa carência de profissionais com laços fortes com as agremiações, fato que se via com maior freqüência em outros tempos com o Santos de Pelé, o Palmeiras de Ademir da Guia, o Botafogo de Garrincha, o Corinthians de Rivelino, entre outros?
José Paulo Florenzano –Eu penso que existe muita idealização desse pensamento do amor à camisa. Muitos atletas que tiveram amor à camisa acabaram na miséria. Por outro lado, existe uma perda de identidade, de se mencionar o nome de um jogador e, rapidamente, lembrar-se do clube em que ele atua.
No entanto, é bom que exista esse transito intenso. Eu não vejo essa movimentação como algo negativo, até mesmo em casos de atletas que foram ídolos em uma agremiação e têm a coragem de recomeçarem a carreira no clube rival. Isso, no mínimo, suscita uma problematização sobre a identidade desses clubes.
Por isso, podemos olhar essa questão de um ângulo diferente daquele que é comumente abordado. Eu não entendo esse fato como algo ruim para o debate do futebol. Um atleta identificado com um clube durante muitos anos vai jogar no elenco rival. O que isso representa? O que acarreta de mudanças nas duas agremiações?
Um exemplo que, na verdade, não é tão radical quanto um jogador passar de um clube para o rival, mas que mostra como é bom o trânsito dentro do futebol é o do Sócrates. Ele entra no Corinthians em 1978 como, talvez, o mais anti-corintiano dos atletas, porque o estereótipo do jogador corintiano é aquele que joga com raça, que se doa ao máximo. Mas, o estilo de jogo do Sócrates não era esse, ele era um artista, um artesão. Então, a contratação de um atleta que, talvez, se sentisse mais à vontade na academia do Palmeiras, com um time de mais toque de bola, que possuía o ritmo do Ademir da Guia, e não a correria do Wladimir e do Corinthians, coloca em questão a mitologia corintiana de jogar com raça. O Sócrates vai colocar em crise esse ideal, e ambos se transformam.
É extraordinário perceber-se como a entrada do Sócrates obriga a torcida do Corinthians a se readaptar a um ritmo de jogo que ele vai estabelecer, e, inversamente, como ele também tem que fazer concessões. O Sócrates também vai dar carrinho, também vai fazer gols e se emocionar, rompendo um pouco com a frieza que ele construía em torno de si.
Portanto, eu não vejo essa movimentação como um problema. É claro que se tem, mais no Brasil do que na Europa, a perda total de vínculo se o jogador fica dois ou três meses em uma agremiação e, de repente, já está em outra, e as pessoas mal conseguem montar a escalação do seu time.
Se visto desse prisma, isso é um problema. Porém, eu acredito que não devemos cair no saudosismo de achar que era um mar de rosas, o atleta que, por muitas vezes, passava uma vida inteira em um clube e não saía, em certos casos, não por amor à camisa, mas porque, na época, havia a Lei do Passe e ele não tinha força política suficiente para romper com o clube.
Cidade do Futebol – Levando-se em conta o seu comentário de que o Sócrates teve que se adaptar ao estilo de jogo do Corinthians e a torcida corintiana à forma de jogar desse atleta, ainda é possível fazer uma relação entre os perfis do clube e das suas respectivas torcidas? O São Paulo é atualmente o verdadeiro time do povo?
José Paulo Florenzano –A identidade de um clube também sofre mudanças ao longo do tempo. Por exemplo, o Palestra Itália foi fundado para representar os diversos grupos italianos em São Paulo. Era ele que conferia essa identidade italiana a essas comunidades. Em um determinado momento, ele é obrigado a mudar de nome e se transforma em Palmeiras e, a partir daí, abre-se para outros grupos dentro da sociedade.
O Corinthians, ao contrário do que diz o mito fundador, é um clube que, como todos os demais, teve uma postura restritiva, chegando a barrar os jogadores negros, em um momento em que havia um grande preconceito em relação a esse grupo. Aos poucos, o Corinthians vai se tornar um clube de massa e, ao longo desse percurso, ele passa a representar dentro de São Paulo dois grandes grupos. Os descendentes de escravos, tomando o lugar de várias outras agremiações que haviam sido fundadas para representá-los. Não é a toa que o Wladimir dizia que ele sentia a identificação dele com a torcida à flor da pele.
Outro grupo do qual o Corinthians vai se beneficiar é dos nordestinos. O clube é quase que um rito de integração do migrante que vem do nordeste do país na sociedade paulistana. Dessa maneira, o time de Parque São Jorge consegue se implantar como clube de massa.
Hoje, porém, o Corinthians vive um conflito, pois a categoria “povo” foi posta em crise pela globalização e pelo Liberalismo, o que gerou uma crise de identidade no clube.
Por outro lado, o São Paulo que, historicamente, é identificado como um clube da elite, por conta de uma estratégia que passa pela construção do Morumbi em 1970, pela criação de centros de treinamento, pela aposta na preparação física, na elaboração de uma comissão técnica permanente, e pela constituição de uma “máquina de guerra”, é o exemplo mais bem acabado de uma estratégia de um clube para se tornar uma equipe de massa.
Portanto, percebe-se que, ao longo do século XX, esses clubes mudaram de posição, incorporando novos grupos nas suas respectivas identidades.
Cidade do Futebol – Por exemplo, a contratação do Bobô, que havia se destacado pelo Bahia, e foi jogar no São Paulo, ou a ida do Enéas para o Palmeiras, são contratações que não são feitas de maneira desinteressada. Existe uma intenção específica nesse tipo de aposta, tanto na construção da identidade do clube como na atração de certos tipos de torcedores? Pode-se apontar, hoje, o São Paulo como o verdadeiro “time do povo”?
José Paulo Florenzano –No caso do São Paulo, esse tipo de contratação passa pelas contratações de Leônidas da Silva, e depois pela do Didi, que teve uma curta passagem pelo clube, nos anos 1950. Outro caso, como foi citado, foi o do Bobô. Porém, não sei até que ponto essas contratações podem ser incluídas na conta de uma estratégia de popularização do clube, mas certamente, esse fator também é um efeito que deve ser levado em consideração.
Um fato real referente a esse aspecto é que o Corinthians está lapidando o seu capital simbólico, a sua identidade de clube do povo. Hoje, ele vê a sombra do São Paulo, que conseguiu uma forte penetração nas camadas populares, além da enorme dificuldade que há no elenco corintiano de se reafirmar como um time de raça. Mesmo porque a categoria “povo” se dissolveu.
Mais ainda, talvez como um paradoxo, à medida que o Corinthians se aproxima dessas parcerias milionárias, e suspeitas em alguns casos, ele tem uma perda dessa imagem do clube onde o atleta tem que se doar ao máximo, que é a torcida que tem um time e não um time que tem uma torcida. Todo esse sistema de significados sofre um pouco com esses modelos de acordos.
Cidade do Futebol – Trazer o futebol para dentro da academia ainda é algo difícil no Brasil para abordá-lo nos seus meandros mais sociológicos e históricos?
José Paulo Florenzano –Já houve uma mudança muito significativa. Ficou para trás a idéia do futebol como o “ópio do povo”, discurso que associava a modalidade a um mecanismo de alienação e um certo preconceito que impedia a academia de reconhecer o futebol como um objeto de estudo e um acesso privilegiado para a compreensão da realidade brasileira.
Atualmente, têm-se, em várias universidades, núcleos de estudo e pesquisa com uma massa significativa de trabalhos, dissertações, teses sobre esse tema abordado-o de diferentes ângulos (da psicologia, da sociologia, da história, da antropologia, da economia, etc).
O futebol é um fato social total, isto é, ele contempla os múltiplos aspectos da vida social, revelando essa realidade com todas as suas linhas de força e contradições. Ou seja, o futebol é reconhecido como um objeto de estudo. Quanto a isso, eu não tenho a menor dúvida.
Cidade do Futebol – Recentemente, foi inaugurado o Museu do Futebol. Nele, há algumas referências à figura de Charles Müller, ratificando-o como principal introdutor da modalidade no país. No entanto, existem algumas divergências quanto a essa questão. Como você avalia esses fatos conflitantes e a própria iniciativa da criação desse museu?
José Paulo Florenzano –O Museu do Futebol é uma idéia extraordinária e, aos poucos, ele irá se aprimorando, com a contribuição de jornalistas e historiadores, e com a participação dos seus assessores.
No caso do Charles Müller, alguns historiadores brasileiros já colocaram em cheque a leitura de que ele é o introdutor do futebol no Brasil e o grande responsável pela difusão da modalidade no país. Na realidade, ele foi a pessoa que difundiu o futebol dentro dos grupos aristocráticos.
Mas como diz José Geraldo Couto, “o futebol no Brasil já nasce com a marca da diversidade”. Ou seja, ele se propaga com extrema facilidade e rapidez em outros campos como a várzea e as fábricas.
Cidade do Futebol – A maneira de falar na terceira pessoa e o distanciamento em relação à luta racial direta foram fatores que contribuíram para que o Pelé se destacasse no futebol em nível mundial?
José Paulo Florenzano – É muito difícil manter-se na trajetória que o Pelé conseguiu ficar, com todo o sucesso por ele obtido. Esse autocontrole ao longo de toda a sua carreira, é um ponto que merece ser destacado. Logo, esse aspecto dele falar sobre ele mesmo afastando-se da figura Pelé é o mínimo que podemos citar nesse sentido.
Sem isso, dificilmente ele teria se comportado corretamente diante da projeção que o nome dele teve no mundo, de toda a idolatria que há em torno da sua figura, de como ele foi utilizado pelo regime militar, entre outros fatores.
Em relação à questão racial, ele foi bastante cobrado por não ter tomado uma postura mais explícita de condenação ao racismo dentro da sociedade brasileira. Por isso, ele passa como alguém que reproduziu o discurso da democracia racial supostamente existente no Brasil.
No entanto, o que ele significou para os negros dentro do Brasil e na América? Nesse sentido, se percebe que o Pelé desempenhou um papel muito grande na reelaboração da identidade negra. Isso passa pela admiração que o Bob Marley tinha em relação a esse atleta brasileiro, pela maneira como ele incandescia o imaginário dos países africanos e de outros lugares.
Portanto, bem feitas as contas, o Pelé teve uma participação significativa em um processo mais amplo de tomada de consciência da questão racial no Brasil, embora, explicitamente, ele não tenha elaborado um discurso contundente a respeito disso.

30 de novembro de 2008

Autônomos FC: "futebol com alegria, mais espontâneo, menos mercadológico"


Entrevista concedida pelo Autônomos FC para a ANA, Agência de Notícias Anarquistas.




Criado por punks e anarquistas, desde 1º de maio de 2006, existe na Grande São Paulo um time de futebol autogestionado, com espírito anárquico. O Autônomos Futebol Clube, ou “Auto”, como é carinhosamente chamado por seus “fãs”. “Um time com ideal autogestionário, anti-racista, anti-fascista, contra o futebol mercadoria”, explica Kadj Oman, um dos fundadores do clube. Na entrevista a seguir, ele fala, com a espontaneidade e malandragem libertária de um bom boleiro varzeano, do Autônomos FC e do esporte mais popular do país, cada vez mais industrializado e burocratizado pelos interesses materiais. Mas que, também, sob sol e chuva, terra batida, bola improvisada, descalços, resiste, alegra e encanta nas mais diversas “peladas” das periferias e rincões miseráveis do Brasil. Confira o bate-bola:


Agência de Notícias Anarquistas > Fale um pouco sobre o Autônomos Futebol Clube, sua organização e objetivos, em que contexto ele surge…

Kadj Oman < Bom, no fim de 2005, eu comecei a organizar um campeonato de futebol de salão que se chamava Copa Autonomia. Nele, não havia juiz e as regras eram poucas. Fizemos 10 edições dessa copa sem nenhum problema. Mulheres jogavam, crianças, a gente se divertia (inclusive, dá pra ver o vídeo da 1ª edição do torneio procurando pelo nome no YouTube). Aí, no Carnaval Revolução de 2006, em Belo Horizonte (MG), acabei participando de uma palestra/bate-papo sobre futebol e revolução, e conheci o Mau, o Jão e a Mix, do Ativismo ABC. Compartilhando um pouco das nossas angústias sobre o punk e o futebol, tivemos a idéia de fazer algo nesse sentido quando voltássemos. Aí eu aproveitei que na Copa Autonomia tinha um pessoal interessado na idéia e fundamos o time, pra jogar futebol society, no início. Foi uma época de muitas alegrias e muitas derrotas, tirando as amizades que surgiram. Jogaram suíços (5 ao mesmo tempo, de uma banda de ska), argentinos, australianos, canadenses, colombianos. E muitos brasileiros, punks ou não, afeitos ao ideal de autogestão. Mas o societyera mercadológico demais pra gente, e então fomos pra várzea, onde mais e mais gente foi se interessando pelo time e ele cresceu. Hoje temos dois quadros e um time “júnior”, composto por alunos de um dos zagueiros do time. Sobre a organização, bem, a gente divide tudo, desde lavar os uniformes até ficar de gandula nos jogos, passando pela vaquinha pra pagar o campo em que jogamos, que é alugado. E os objetivos sempre foram o de resgatar o futebol com alegria, mais espontâneo, menos mercadológico, sem se fechar a qualquer um que concordasse com a idéia de autogestão. Faz pouco mais de um mês, traçamos um estatuto, já que o time está cada vez maior e a gente não quer perder o objetivo principal dele, que é se divertir. Lógico que jogamos pra ganhar, até porque fazer as coisas você mesmo pra gente significa fazer o melhor possível, mostrar o quão bom se pode ser assim. Mas não colocamos a vitória acima de tudo - aliás, só nos últimos 4 meses que o time passou a ganhar mais do que perder mesmo.


ANA > E que história é essa de futebol autogestionado?

Oman < Pra ser justo, toda a várzea é meio que autogestionada. Surgem campos onde quer que haja um pedacinho de terreno, por mais que a metrópole engula espaços e vomite de volta o futebol society e o futsal, além do profissional, é claro. Mas no nosso caso, a autogestão passa por uma questão estrutural, de não ter presidente, diretor, tesoureiro, nada. Temos sim capitão, técnico, goleiros, laterais-direitos, porque isso não tem a ver com hierarquia necessariamente, e sim com aptidões ou gostos pessoais por jogar aqui ou ali, ou fazer essa ou aquela função. E divulgamos essa idéia de autogestão por onde jogamos, distribuindo panfletos ou no boca-a-boca mesmo. Alguns jogadores que estão com a gente, inclusive, eram de times que enfrentamos e que gostaram do nosso jeito de lidar com as coisas. Então a nossa autogestão é tentar ser o mais livre possível dentro do que se quer ser, mas respeitando os princípios básicos e as responsabilidades inerentes a todo projeto coletivo, como chegar na hora, colaborar com a grana sempre que necessário etc. Claro que no meio disso tudo às vezes surgem conflitos, mas o que seria a vida sem conflitos?


ANA > E qual a relação do Autônomos FC com o anarquismo? A cor do uniforme é mera coincidência? (risos)

Oman < (risos) É não é não. Acontece que o time foi fundado por punks e anarquistas, então na hora de escolher o escudo e as cores do uniforme isso contou. Mas conforme foi crescendo, o Auto (apelido carinhoso do time) foi se abrindo. Nunca foi um time explicitamente anarquista, mas sempre foi um time com ideal autogestionário, anti-racista, anti-fascista, contra o futebol mercadoria. Na verdade, os fundadores e boa parte do time, hoje, é de românticos, que ainda enxerga o futebol como uma crônica continuamente narrada a muitas vozes sobre a vida. Até banda de “rock’n'gol” o time gerou, a Fora de Jogo, que toca trajada com os uniformes do time e fala de futebol (sob uma ótica política) em todas as suas músicas. Além de que, convenhamos, preto e vermelho é uma combinação de cores das mais bonitas que existe. Os anarquistas, além de tudo, sempre tiveram bom senso estético. (risos)


ANA > Como explicar um anarquista ser fanático por futebol, por um time profissional, que cada vez mais são verdadeiros instrumentos capitalistas de manipulação, consumo e controle social? Ou assim como o amor não tem explicação? (risos)

Oman < Olha, explicação mesmo acho que não tem. A gente cresce gostando de futebol, aprende nele e com ele a se expressar, a se entender no meio de um coletivo (a torcida), acaba virando um dos nossos primeiros lugares de socialização. E como é o único que é contínuo pela vida toda, difícil se desligar dele. Até porque existiram muitos times anarquistas na história, o começo do futebol é operário, e ele é mais do que tudo uma festa popular. No início do século anarquistas aqui em São Paulo nomeavam suas equipes de “Flor” ou “Estrela”. Então, sempre que você encontrar um boteco ou padaria com esse nome, são grandes as chances de ele ter um passado anarquista. (risos)

E se o profissional é cada vez mais instrumento de controle, ele permite também nas suas brechas diversos tipos de encontros essencialmente anti-capitalistas, pró-ócio, pró-festa. A Gaviões da Fiel, torcida do Corinthians, por exemplo, se aproximou do MST nos últimos anos, dos Sem-Teto, promove festivais de cinema político, entre outras coisas. Temos que tomar cuidado pra não tomar a festa do povo por ópio, esse velho clichê, porque não é simples assim. O futebol foi apropriado pelo capital, assim como todo o resto, mas o próprio capital, contraditório que é, recria possibilidades dentro do profissional mesmo de ir contra ele (um bom exemplo, embora já meio distante temporalmente, é a Democracia Corinthiana). Cabe encontrar essas brechas, aproveitá-las, aprofundá-las. Durante toda a sua história o futebol opôs controle à festa, foi usado para dominar de um lado e para contra-atacar o domínio de outro. São tantas as histórias possíveis de serem contadas dentro do futebol… Um livro legal sobre isso é o “A Dança dos Deuses - Futebol, Sociedade, Cultura”, do historiador Hilário Franco Júnior. O que podemos e devemos fazer é continuar a contá-las, do nosso jeito, sem deixar que as vendam como mero produto descartável.


ANA > Será mesmo que o futebol profissional recria possibilidades de ir contra ele mesmo? Não acredito. O futebol profissional brasileiro está tomado pela maracatuia, pelo mercado, pelo negócio, vide Rede Globo, CBF´s, Trafic´s, Adidas e por aí vai. E por outro lado, os jogadores profissionais, na sua maioria, são despolitizados, sem atitude, vão à mercê dos dirigentes, cartolas. E no grosso as torcidas organizadas não são muito diferentes disso tudo não, também vão a reboque de políticos, dirigentes, cartolas… Na Itália, e em outras partes da Europa, que foi criado um movimento interessante por vários grupos “Ultras”, chamado “Contra o Futebol Moderno”, que luta contra as condições precárias dos estádios, ingressos caros, partidas sendo jogados em horários não-tradicionais, jogadores sendo vendidos como mercadoria, a comercialização excessiva no futebol etc. As torcidas uniformizadas do Brasil poderiam seguir esse exemplo, não?

Oman < Não vou te dizer que o profissional dá possibilidades o tempo todo de se ir contra ele, mas as recria vez ou outra sim. Se está envolto em tudo isso que foi mencionado, me diga, em que é diferente de qualquer outra esfera da sociedade? Tudo foi apropriado pelo capital, as relações sociais baseadas na venda são quase totalitárias, então as brechas são mesmo pequenas, ainda mais em um país onde as organizações sociais são tão marginalizadas e politicamente tão superficiais (não todas). As organizadas seguem o mesmo caminho. Não dá pra esperar delas uma postura que nenhum (ou quase nenhum) outro movimento organizado da sociedade toma, como essa de ir contra o futebol moderno. As poucas torcidas que vejo tentando seguir algum exemplo de fora acabam copiando as formas estéticas, as faixas, os gritos de guerra, mas não o conteúdo das reivindicações. Mas mesmo assim há organizadas indo contra sim. Um exemplo é a Resistência Coral, do Ferroviáio do Ceará, abertamente anti-capitalista, que leva faixas com dizeres como “paz entre as torcidas, guerra ao Estado”. Normalmente são torcidas menores, frutos de movimentos pequenos, como em geral é o anarquismo e o anti-capitalismo no Brasil. Mesmo assim, nas grandes torcidas aparecem às vezes manifestações nesse sentido. Já citei a Gaviões, que este ano levou faixas contra o preço dos ingressos nos jogos fora de casa do Corinthians. A Mancha Verde, do Palmeiras, também recentemente protestou contra o preço dos ingressos no estádio do clube. Eu acredito que os próprios constrangimentos que o capital imprime junta pessoas em direção a lutas por direitos básicos. Essa história da Copa 2014 e seus estádios a la européia vai dar pano pra manga. Já dá, aliás. Ano passado, acompanhando a final da Taça Brahma no estádio do Palmeiras, vi um monte de gente de Itapevi, cidade periférica da Grande São Paulo, se deslumbrando com o Setor Visa, pedaço do estádio com preços altos e cheio de mordomias. Outras pessoas, ao mesmo tempo, achavam aquilo absurdo, porque elitizava o estádio. A força das organizadas, que a mídia insiste em colocar na violência e na coerção, na verdade reside no fato de que elas são aglutinadoras de gente da periferia, que é quem mais sofre com as restrições do capital. Disso sempre pode surgir algo. E há de lembrar também que na mesma Europa contra o futebol moderno estão torcidas neonazistas, que também são contra o futebol moderno, obviamente por outros motivos. A Eurocopa desse ano mostrou neonazistas croatas com faixas com esses dizeres. Então, temos sempre que pensar as possibilidades dentro das realidades históricas, sociais, políticas de cada lugar. Não dá pra querer no Brasil a força de um movimento anarquista organizado como o grego, por exemplo, do dia pra noite. Mas nem por isso não existem possibilidades ou se deve jogar fora o que há.


Confira o restante desta entrevista no blog do Autônomos FC.


Nós da Ultras Resistência Coral ficamos honrados com a lembrança dos camaradas do Autônomos FC e esperamos ansiosamente pelo dia em que poderemos disputar um racha com os camaradas, de preferência em alguma manifestação com bloqueio de rua!