Futebol de várzea: paixão pelo esporte não está só nos estádios grandiosos
Foto: Diego Viñas / Catraca Livre
Lucas Martins, de Londrina (PR)
Desde a célebre faixa “Perder ou Ganhar, mas sempre com Democracia” ostentada pelos jogadores da Democracia Corintiana, na década de 1980, não víamos no Brasil, como vimos em 2013, um momento tão propício para a discussão dos rumos políticos deste país sob a ótica e linguagem acessível do futebol. Se durante a Ditadura Militar, o jogador Sócrates e seus companheiros se aproveitaram de sua inserção em boa parcela da classe trabalhadora brasileira para, através do esporte, trazer a tona o desejo de liberdade, neste ano, a voz das ruas afirmavam abrir mão da Copa do Mundo, reivindicando as enormes quantias de dinheiro investidas nos estádios para a saúde, moradia, transporte e educação.
Tamanha foi a atenção recebida pelo grande evento esportivo a ser realizado no Brasil em 2014 que, além do tema ter sido fortemente citado durante as jornadas de junho e julho, com cartazes exigindo hospitais e escolas “padrão FIFA”, diferentes tipos de manifestações políticas surgiram a partir do tema Copa do Mundo. Foram marchas, atos e passeatas que variaram em aprofundamento do debate político, bem como radicalização da luta. O lema “Não vai ter Copa” percorreu as multidões que protestavam, enquanto movimentos sociais organizavam seus próprios campeonatos de futebol rebelde.
A reação das ruas, mesmo com grande heterogeneidade de reivindicações, não parece aceitar a Copa do Mundo facilmente, sem problematizar o contexto social no qual se realizará. Temos aí uma prova do quanto é problemático o discurso da melhora na qualidade de vida do brasileiro, ou a ascensão dos mais pobres à classe média, tão propagandeada pelo governo Dilma. Num país onde os direitos básicos ainda são de qualidade muito ruim, o dispêndio de grandes quantias em obras que visam apenas um evento não é tolerado por grande parte da população.
Paralela a essa questão não foram poucos os crimes cometidos diretamente pela Copa contra os mais pobres que, literalmente, não fazem parte de seus planos. Os 30 mil desabrigados em Porto Alegre, a invasão do estado à Aldeia Maracanã e o crescimento da prostituição infantil nas regiões de obras não podem ou devem ser esquecidos nas críticas que se possa fazer ao torneio organizado pela FIFA. Além disso, nos últimos três anos, foram inúmeras greves chamadas pelos trabalhadores da construção civil que constroem os palcos da Copa, seja pela péssima qualidade na alimentação ou pelas condições de trabalho que pioram a cada dia em que aproximamos do prazo limite para a entrega dos estádios. Aliás, as mortes de operários em obras da copa, cresceram nos últimos meses.
De junho de 2012 a dezembro deste ano, foram sete operários mortos, número que supera em mais de três vezes os acidentes fatais envolvendo trabalhadores durante os preparativos para a Copa na África do Sul em 2010. Infelizmente, esta contagem ainda pode ser maior, caso levemos em conta os falecimentos nas novas arenas de Grêmio e Palmeiras, que não farão parte do torneio mundial, mas se deram no mesmo contexto de incentivo a grandes empreendimentos esportivos. Neste caso, o Brasil fica com uma triste marca de nove trabalhadores mortos em acidentes envolvendo a construção de estádios.
O ano se encerra com a denúncia do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil do Amazonas de que há operários trabalhando em turnos de até 18 horas por dia. Sintoma do atraso das obras e do descaso das construtoras com a segurança dos trabalhadores, o que descarta a hipótese de falha humana – conveniente às empreiteiras – nos acidentes de trabalho.
Em meio a esse ambiente de politização do cotidiano em que o Brasil se lançou em 2013 – da luta pelo transporte de qualidade ao forte sentimento de negação ao atual sistema de representação partidária – os gramados não poderiam deixar de ser influenciados. Se ainda não temos o nível de participação na vida política do país como tivemos na Democracia Corintiana e nas Diretas já, hoje podemos vislumbrar outros entendimentos acerca do futebol para além do mandamento neoliberal que preconiza o alto rendimento e o ganho a qualquer custo.
O movimento Bom Senso Futebol Clube, organizado por jogadores de dezenas de agremiações de todas as divisões do campeonato brasileiro, com certeza é um exemplo deste novo momento. Contando hoje com mais de mil membros (em pouco mais de três meses de existência) O Bom Senso F.C. tornou-se uma importante ferramenta dos atletas na defesa de seus direitos, paralisando jogos em ações conjuntas. Os braços cruzados desses trabalhadores do esporte não só mostraram aos cartolas, dirigentes esportivos e políticos, quem de fato está no controle e são responsáveis pelo mercado do futebol funcionar, como têm representado a primeira ameaça concreta à Confederação Brasileira de Futebol (CBF), organização que há muito sofre acusações lavagem de dinheiro em escândalos de corrupção.
O grande apoio das torcidas dá o tom de importância ao Bom Senso F.C. que além de representar o interesse da massa que acompanha cada time, pode servir até mesmo de exemplo a ser seguido, ou, em outras palavras, uma vez que a linguagem do futebol tem sido extravasada pela atuação política dos atletas, estes podem exercer um papel pedagógico, facilitando ao cidadão amante de futebol vislumbrar sua paixão não apenas como entretenimento, mas em sua complexidade social.
Este desafio também se encontra frente à imprensa combativa, que se coloca ao lado dos interesses da classe trabalhadora. Em Questões do modo de vida, Leon Trotsky discorre sobre a importância da imprensa dos trabalhadores em estar atenta aos assuntos que movem as massas, e a partir daí, elevar o debate político mesmo nos assuntos tidos como corriqueiros. Assim, ao politizarmos o cotidiano, naturalizamos o senso crítico que devemos ter nas diferentes esferas que constituem nossa vida. O futebol move essas paixões e faz parte da vida de milhões de brasileiros, é um fenômeno social que não deve mais ser encarado apenas em sua dimensão alienante, como parte da indústria cultural que a tudo assume o controle.
Se, como disse José Miguel Wisnik, o sociólogo que não sentar-se em uma arquibancada de estádio jamais poderá entender esse país, o papel da imprensa dos trabalhadores também é de se desapegar das concepções simplistas, que encaram o futebol, como mera diversão banal, ou espaço de perpetuação da riqueza da classe dominante. A abertura para tanto foi dada neste ano pelos fatos aqui citados, o que nos leva naturalmente à pergunta: O que esperar de 2014? Veremos mais uma vez as ruas tomadas por milhões, ou falará mais alto o amor pela seleção brasileira em busca do hexa-campeonato?
Para respondermos a essa pergunta, é interessante retomarmos a relação entre futebol e política existente em nosso sombrio passado da Ditadura Militar. Em 1978, o cartunista Henfil escreveu: “(...) aí na hora que a coisa tava indo, tava indo, chega a Copa do Mundo e leva tudo pra lá. É sempre assim, não conseguimos fazer duas coisas ao mesmo tempo, não sabemos assoviar e fazer xixi ao mesmo tempo, não sabemos chutar bola e fazer democracia ao mesmo tempo”. Henfil fala de uma época de luta por democracia e de avanço do debate político em que o cidadão brasileiro se lançou nos últimos anos do regime dos militares. Um momento em que o futebol e a seleção brasileira eram considerados por muitos, grandes inimigos da luta pela democracia.
E não há como desconsiderar este argumento, uma vez que os governos militares se esforçaram ao máximo para atrelar as glórias do esporte como parte de seus feitos. Talvez o melhor exemplo desta situação seja o Tri campeonato mundial na Copa de 1970, da qual o governo Médici soube aproveitar-se para tirar o foco da população em relação às barbaridades promovidas pelo Ato Institucional nº 5. Enquanto a mídia burguesa convocava os 90 milhões em ação, o Estado tinha caminho livre para o exercício da censura, tortura e assassinatos.
Em 2014, teremos a Copa do Mundo em nosso quintal, e mais uma vez ela ocorre em um ano de eleição para a presidência. Soa ingenuidade acreditar que o atual governo não se utilizará de todos os meios propagandísticos para não só reafirmar a ideia de um Brasil potência através do esporte, mas também esvaziar as ruas, pondo fim à maré de mudanças e na atividade política do brasileiro que vimos crescer em 2013. Não há como negarmos que, mais uma vez, o cenário coloca o futebol como empecilho para a mudança deste país. No entanto, esta não pode ser considerada uma saída por aqueles que acreditam em um projeto de transformação de mundo de forma coletiva.
Assim como Henfil afirma que ninguém o fará ficar contra a seleção, por ele ser contra o governo militar, e que a “seleção é do povo, assim como a greve é do trabalhador”, os interessados em criar as bases para uma revolução no Brasil não devem simplesmente se opor ao futebol, e sim criar, através de sua linguagem, um debate profícuo com as massas de trabalhadores que aborde a política, o papel do Estado e a importância de um projeto socialista para o Brasil e para o mundo. 2014 é ano de Copa e somente se assumirmos a difícil missão de politização do futebol é que poderemos ver o aprofundamento e a evolução das lutas por direitos, caso contrário há grandes chances da imprensa operária afastar-se do diálogo com os trabalhadores.
A história nos revela surpresas, revoluções são como faíscas na pólvora e da mesma forma que 2013 foi um marco na retomada das lutas sociais, em 2014 poderemos ver seu amadurecimento, bem como sua dissipação momentânea. Se é impossível para nós afirmarmos com certeza o que nos espera, podemos construir com nossas mãos um ambiente mais favorável à luta dos trabalhadores. Para tanto é necessário que, pela primeira vez, usemos a Copa do Mundo e a linguagem popular do futebol para avançarmos o debate junto às massas sobre a importância de tomarmos o controle e assumirmos o protagonismo nos rumos de nosso destino, em seus planos político, econômico, social e cultural. A Copa do Mundo e o futebol devem ser suportes para a mobilização política no Brasil.